As universidades que ensinam a lutar pelos direitos humanos

A maior rede global de universidades na área dos direitos humanos, que nasceu na UE e chega a Banguecoque, quer criar cursos também para professores e introduzir tribunais simulados no ensino secundário. A Universidade de Coimbra e a Universidade Nova fazem parte desta rede.

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EPA/PEKKA SIPOLA

Todos os anos 100 universidades espalhadas pelo mundo, duas delas portuguesas, trabalham para um mesmo objectivo: formar profissionais especializados em direitos humanos e democracia. A rede de instituições que compõem o Campus Global de Direitos Humanos é hoje a maior plataforma global de educação pós-graduada, formação e investigação na área dos direitos humanos e democracia, incentivada e financiada pela União Europeia. Dela fazem parte a Universidade de Coimbra e a Universidade Nova de Lisboa.

Neste campus global circulam também todos os anos cerca de 250 estudantes e das suas universidades saíram até agora mais de 3000 profissionais com formação pós-graduada em direitos humanos, preparados para trabalhar em organizações internacionais, centros de investigação, organizações não-governamentais ou entidades nacionais envolvidas na causa dos direitos humanos.

É um projecto “que se desenvolveu organicamente, de forma incremental, mas tornou-se um grande projecto da União, com uma enorme influência na área da divulgação, formação, ensino, investigação em direitos humanos com extensão neste momento em todo o mundo, o que era uma coisa impensável há 22 anos quando iniciámos este projecto”, observa Vital Moreira, director nacional do Mestrado Europeu em Direitos Humanos e Democratização (EMA), da Universidade de Coimbra, em declarações ao PÚBLICO.

A organização de mestrados anuais na área dos direitos humanos é o principal foco do trabalho da rede, que também promove diversos cursos de formação, projectos de investigação e iniciativas de divulgação na área dos direitos humanos, que beneficiam de uma perspectiva transnacional.

“Somos a maior instituição de educação pós-graduada em direitos humanos”, frisa, ao PÚBLICO, Manfred Nowak, secretário-geral do Centro Interuniversitário Europeu para os Direitos Humanos e a Democratização (EIUC, na sigla original), a organização chapéu que coordena o trabalho do Campus. E isso significa, desde logo, uma partilha de experiência e de conhecimento entre os docentes sobre “como formar profissionais de direitos humanos”. Até porque a formação não é apenas teórica e o trabalho que se segue exige competências práticas. “Ensinamos aos estudantes o que fazer quando são enviados para operações no terreno noutros países”, exemplifica. 

Somando outros cursos e formações ministradas regularmente no âmbito do Campus Global, pelo menos 5583 profissionais já foram certificados por esta organização.

Os desafios que estes profissionais têm pela frente são prementes. “Estamos todos conscientes de que os direitos humanos e a democracia estão sob ameaça. Estão a atravessar a crise mais grave a nível global desde o final da II Guerra Mundial”, salienta Nowak. E recorda: “A ordem mundial do pós-guerra foi baseada no respeito e na protecção dos direitos humanos”.

É uma batalha que a rede está preparada para travar. “Esta organização, com cerca de 100 universidades e envolvendo centenas de profissionais, alguns dos quais são líderes na área dos direitos humanos, tem uma palavra a dizer”, garante o secretário-geral do EIUC. “Tentamos superar esta crise através da educação”, realça, mas também “alertamos para os problemas actuais que ameaçam o futuro dos direitos humanos no século XXI”.

O que mais preocupa estes profissionais nos tempos que correm? “Há muitas crises” – migratória, climática, económica – que se reflectem na situação actual dos direitos humanos em todo o mundo”, reconhece o mesmo responsável. “Mas a democracia, em particular, enfrenta um verdadeiro desafio”, destaca, citando o avanço de ideias, partidos e governos de cariz autoritário nos Estados Unidos, Reino Unido, Polónia, Hungria e também no seu país de origem, a Áustria. “Em todo o mundo vemos [aparecer] aquilo que o sr. [Viktor] Orbán [primeiro-ministro húngaro] apelidou de democracia iliberal” – alerta –, em que os mecanismos democráticos surgem divorciados de liberdades fundamentais. “É uma tendência global”. “Sentimos que o Campus Global de Direitos Humanos está numa posição particularmente boa para afirmar isto e tentar mudar” este estado de coisas.

Crescimento orgânico

Este mestrado europeu, criado em 1997, começou por uma rede de apenas 12 universidades europeias, entre as quais a Universidade de Coimbra. Com o alargamento da UE, no início do século, o número de universidades cresceu e, mais tarde, cada país europeu passou a poder incluir mais do que uma instituição. Foi aí que entrou a Universidade Nova de Lisboa.

“A criação do mestrado europeu [conhecido pela sigla EMA] justificou-se pela necessidade, sentida e apoiada pela União Europeia de formar quadros especializados em Direitos Humanos que pudessem ajudar em organizações internacionais, organizações não-governamentais ou quaisquer outras entidades a fortalecer a causa dos direitos humanos”, sublinha Teresa Pizarro Beleza, directora do EMA na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. “No início, a ligação ao processo de democratização da Europa de Leste era evidente”, ilustra.

Posteriormente, foi criada uma base institucional – o EIUC – que funciona como um consórcio de universidades europeias e, progressivamente, sempre com o apoio financeiro da União Europeia e apoio logístico e académico deste centro, foram instituídos outros seis mestrados regionais: no sudoeste europeu (com sede em Sarajevo); no Cáucaso (sede em Erevan, na Arménia); em África (sede em Pretória na África do Sul); na Ásia-Pacífico (sede em Banguecoque, na Tailândia); América Latina e Caribe (sede em Buenos Aires) e, mais recentemente, no mundo árabe (sede em Beirute, no Líbano).

“Cada programa tem em conta a região específica e as suas particularidades”, explica Manfred Nowak. A Declaração Universal dos Direitos Humanos integra todos os programas, mas depois há uma “declinação regional”, complementa Vital Moreira, em função das convenções regionais: se no caso da Europa, se segue a Convenção Europeia de Direitos Humanos, no mundo árabe, por exemplo, já se estuda a Carta Árabe de Direitos Fundamentais.

A partir de 2012, o EIUC desenvolveu esforços para promover uma maior integração destes mestrados regionais de forma a criar um verdadeiro campus global. Através de um memorando de entendimento, foi estabelecida “uma espécie de federação” dos sete mestrados e inaugurada, em 2010, a Academia de Veneza de Direitos Humanos, destinada à formação avançada nesta área. A partir de Fevereiro, com a alteração dos estatutos do EIUC, será possível a cada uma das cem universidades integrar formalmente a organização-chapéu, adianta ainda Nowak.

“Foi a própria União Europeia que incentivou este desenvolvimento para dar uma dimensão global e para colocar esta extensão de soft power e de autoridade moral da União Europeia em matéria de direitos humanos ao serviço de um projecto mais integrado”, lembra, por seu lado, Vital Moreira.

Intercâmbio de estudantes

O primeiro semestre é leccionado em Veneza, numa espécie de “internato intensivo” e, no segundo semestre, os estudantes têm de concorrer a uma universidade europeia do consórcio, mas fora do seu país de origem, onde preparam a tese final. “Só recebemos estudantes de outros países. E os nossos estudantes vão para universidades diferentes”, explica Vital Moreira. A Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, por exemplo, recebeu 68 estudantes, provenientes de diversos países europeus, mas também do Brasil e Canadá e até dos Camarões (há uma pequena quota destinada a alunos de fora da Europa). Na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, concluíram a sua tese, no âmbito do EMA, 44 estudantes estrangeiros. Quanto aos portugueses, 91 concluíram este mestrado europeu.

A criação do EMA e, mais tarde do Global Campus, teve também impacto nas próprias universidades. O Centro de Direitos Humanos “foi criado por causa do curso”, salienta Vital Moreira e a Universidade de Coimbra lecciona há 22 anos uma pós-graduação nesta área. “O que acontece em Coimbra aconteceu em várias universidades”, nota. “Para os estudantes da NOVA Direito, a existência do EIUC/Global Campus é antes do mais um alerta”, realça Teresa Pizarro Beleza, para os assuntos de direitos humanos.

Este impacto estende-se a outras regiões. “Sem o apoio da União, sem apoio académico e logístico de Veneza, o mestrado africano nunca existiria”, exemplifica Vital Moreira. O mestrado com sede em Pretória (África do Sul) envolve 14 universidades, entre as quais a Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique. “É porventura das tarefas mais meritórias da União. Todos os anos centenas de pessoas nessas regiões saem como peritos capazes de acção junto dos seus governos, de organizações não-governamentais” em prol dos direitos humanos.

Ir às escolas

A organização negoceia agora a criação de um novo mestrado regional na Ásia central e outro na América do Norte. Um outro projecto, em desenvolvimento com a UNESCO, visa incluir a educação para os direitos humanos em todos os graus do ensino escolar. “Numa altura em que os direitos humanos estão a ser desafiados, temos de repensar a educação nas escolas”, argumenta Manfred Nowak. Em cima da mesa está a criação de cursos para professores e a introdução de tribunais simulados (moot courts) no ensino secundário. “É um enorme desafio”, admite.

A União Europeia, que tem sido o principal financiador do projecto, destinou, através do Instrumento Europeu para a Democracia e os Direitos Humanos, 9,4 milhões de euros para o triénio 2018-2020 ao desenvolvimento desta rede. O valor representa “um corte significativo” no apoio (10%), segundo o secretário-geral do EIUC. E realça: “precisamos de apoio financeiro, porque não queremos ser elitistas ou oferecer cursos de mestrado para pessoas ricas, mas sim para os melhores [estudantes]”. Até porque, recorda, “está em linha com a política externa e de desenvolvimento da União Europeia, disseminar a mensagem dos direitos humanos e da democracia”.

Treinar a observação eleitoral

Para além dos sete mestrados regionais em Direitos Humanos e Democratização, o EIUC/Campus Global de Direitos Humanos organiza regularmente outros cursos de formação e de treino profissional nesta área, focando competências específicas, como a participação em missões de observação eleitoral.

Já a Escola de Veneza de Direitos Humanos, criada em 2010, fornece formação intermédia, através de cursos intensivos de oito dias, num modelo de “Escola de Verão”.

A educação à distância é igualmente incentivada, através de uma oferta de cursos online, abertos a todos os interessados, que permitem abordar “questões actuais e urgentes” nesta área, nota Teresa Pizarro Beleza, que participou num deles – sobre “Violência de género em contexto de migração”.

Esta rede global tem igualmente facilitado o desenvolvimento de “múltiplos projectos de investigação, colaboração e apoio com variadas entidades nas áreas dos direitos humanos e da democratização em diversas zonas do mundo”, refere Teresa Pizarro Beleza. A NOVA Direito, exemplifica, tem recebido alunos de universidades da Federação Russa para períodos curtos de estudo na área dos direitos humanos.

Todos os anos é ainda dinamizada, por um dos mestrados regionais, uma conferência internacional, que reúne docentes e discentes da rede, mas também representantes de organizações de direitos humanos e democratização, para promover o debate sobre desafios globais neste domínio.

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