A Europa pode suicidar-se?

O que é preciso fazer para derrotar os nacionalistas radicais e os populistas e reforçar a UE, único caminho para garantir a paz e prosperidade da Europa neste século?

Pode. No século XX a Europa tentou suicidar-se duas vezes, em 1914 e 1939, quando desencadeou duas guerras mundiais, o que levou à sua devastação, destruição de países inteiros, milhões de mortos, cidades reduzidas a cinzas e empobrecimento. A razão foi a ascensão dos nacionalismos radicais, as rivalidades intestinas das potências europeias, a disseminação da ideologia do ódio, da superioridade racial e da demonização do outro. Hoje estes demónios estão de volta e podem tornar o futuro sombrio. A isto acresce o facto de no século XX a Europa ter sido salva pela resiliência da Inglaterra e pela ajuda preciosa dos EUA. Hoje a Europa está entregue a si própria porque a anglosfera está mergulhada no caos. O processo do “Brexit” revela a desorientação política e estratégica do Reino Unido. A política errática e primária de Trump está a destruir a ordem internacional liberal construída pelos EUA, mina alianças, promove guerras comerciais e fomenta a fragmentação da UE.

O que está hoje sob ataque das forças nacionalistas radicais e do populismo é o projeto europeu, a UE e o euro. Não é por acaso que o ex-conselheiro de Trump, Steve Bannon, anda pela Europa a federar a extrema-direita e que Matteo Salvini diz que o “euro é um crime contra a humanidade”. Eles sabem que as eleições de Maio são uma batalha crucial e que pela primeira vez podem quebrar o domínio no Parlamento Europeu dos partidos moderados – sociais-democratas e democratas cristãos – que têm sido os grandes motores da construção europeia, que trouxe paz e prosperidade à Europa, garantiu as liberdades de circulação e promoveu o crescimento económico. Os pais fundadores da UE tinham uma visão a longo prazo para tirar o continente da guerra e souberam mobilizar o apoio político para a implementar. É disso que precisamos hoje: uma nova visão integradora e mobilizadora virada para o futuro. Todos sabemos que a UE não é perfeita, o euro tem falhas, o mecanismo de decisão é lento e não está à altura de responder às crises, cresce o divórcio entre instituições europeias e cidadãos. Mas tudo se pode resolver. O que é preciso fazer para derrotar os nacionalistas radicais e os populistas e reforçar a UE, único caminho para garantir a paz e prosperidade da Europa neste século?

Primeiro: atacar as disfuncionalidades políticas e económicas da UE, acelerar os mecanismos de decisão, antecipar as crises e lutar para as resolver. A UE demorou a lidar com a crise financeira e económica, adotou medidas tímidas e ainda não completou a União Económica e Monetária, o Fundo de Depósitos Comuns marca passo, a supervisão dos bancos nacionais deve ser aprofundada e centralizada, passos sérios na partilha de riscos têm de ser dados com o reforço da confiança recíproca. É a hora de os Estados-membros discutirem avanços numa partilha dos riscos mais significativa, para já com um risco moral limitado. Um orçamento europeu sério, uma garantia de depósitos e subsídio de desemprego comuns seriam mecanismos essenciais para responder a crises, proteger os países em dificuldade e funcionarem como estabilizadores automáticos, como defende Jean Tirole. E acresce que esta partilha de riscos torna credível a política de não resgate defendida pela Alemanha e outros países. Embora a situação seja diferente nos EUA, desde que foram introduzidos os estabilizadores automáticos, nunca mais o governo federal resgatou os Estados.

Segundo: a regeneração dos partidos e do sistema político. Os partidos hoje estão refugiados num autismo crónico, divorciados da realidade e não respondem aos problemas das pessoas. Existe um esvaziamento da política que convida à emergência da demagogia e do populismo. Estes movimentos capitalizam o descontentamento e tentam opor o povo “moralmente puro” às “elites pretensamente corruptas”. Isto é uma ilusão. Como disse Ralf Dahrendorf: “O populismo é simples, a democracia é complexa.” O populismo é uma sombra da democracia representativa porque é fácil manipular descontentamentos, tecer reivindicações, desafiar o sistema e desembocar em atos perniciosos e antidemocráticos. Como disse Pierre Rosanvallon, vivemos a “era da política negativa” que se afirma mais pela rejeição do que pelo projeto. Mas atenção: o descontentamento existe e a reação certa é compreendê-lo e não chamar “deploráveis” às pessoas ou reagir com arrogância a movimentos como o dos "coletes amarelos". É preciso entender, como o mostram os estudos de Piketty e Milanovic, que a globalização, além dos seus efeitos positivos múltiplos, teve nas últimas décadas um efeito nocivo na Europa e nos EUA: provocou a perda de rendimentos das classes médias e baixas e a estagnação dos salários, criando uma forte perceção de exclusão. E a revolução tecnológica, com a digitalização e a automação, reforça esse sentimento. As democracias têm que ser inteligentes para ir à raiz dos problemas e corrigi-los não desprezando os contestatários mas pensando em políticas públicas sólidas que promovam a redistribuição da riqueza. Se estas políticas forem eficazes, combinadas com estabilizadores automáticos europeus que minimizem choques assimétricos, muito do ressentimento vai desaparecer e as pessoas vão recuperar a confiança nos partidos e na democracia. E para isso é necessária uma governação mais inteligente, novos modelos de atração e participação, em especial dos jovens, na política, e diálogo com os movimentos sociais para criar consensos alargados. Não há futuro sem democracia e sem partidos políticos.

Terceiro: a UE tem de se assumir como um ator geopolítico dotado de pensamento estratégico e vontade. A UE está rodeada por uma cascata de crises, do Norte de África ao Médio Oriente, da Europa de Leste à Rússia. E face a tudo isto é de uma passividade confrangedora. Falhou no passado com o Processo de Barcelona e a União do Mediterrâneo, e continua a falhar. A UE não compreende que a ordem exterior é a primeira garantia da ordem interior. A relação com o Norte de África tem de ser multidimensional, não apenas ao nível dos governos mas das instituições. Os países vizinhos da Europa têm de sentir empenho, ajuda produtiva, cooperação real para resolverem as disfuncionalidades das economias, lutarem contra a pobreza e fixarem populações. Começa aí a capacidade de lidar com as migrações. Elas existirão sempre, é uma constante da história. A Europa é também um produto das migrações. O que é preciso hoje é a UE trabalhar com os países de origem, definir uma politica multilateral sobre o movimento das pessoas, criar sistemas de governança com todos os atores, acolher os migrantes de forma organizada, reconhecer o seu valor para a demografia e a economia e adaptar as regras de cidadania tornando-as mais flexíveis. Finalmente, a UE tem de resolver o seu problema com a Rússia, que deve ser um parceiro estratégico. A UE tem uma população, um PIB e um orçamento militar que são superiores mas comporta-se face à Rússia como um anão político e isso é perigoso. Em 2019 pode agravar-se o conflito entre a Rússia e a Ucrânia e a UE tem de saber lidar com crises, definir os seus interesses permanentes, criar um consenso estratégico e atuar forçando uma negociação inteligente e baseada em princípios que procure uma solução estável e benéfica para as partes. Nietzsche escreveu um dia: "A insanidade nos indivíduos é algo raro. Mas em grupos, partidos, nações e épocas, é a norma.” A Europa não pode deixar a insanidade à solta.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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