Naky percorre a Lisboa africana que a história silenciou

Do Togo para Portugal, Naky veio ensinar aos de fora como foram os tempos da escravatura que parecem distantes aos olhos dos de cá. Para ele, "um povo sem conhecimento da sua história é como uma árvore sem raiz". Por isso criou a African Lisbon Tour.

Sob um sol quente de Inverno que aquece as pernas, a Praça do Comércio pulsa ao ritmo do bulício lisboeta. O ponto de encontro é junto à estátua de D. José I. É lá que começa uma viagem por uma Lisboa de outro tempo, pautada pela escravatura e desigualdade racial. Naky Gaglo, de 40 anos, criou o percurso há três anos e meio. Nas próximas cinco horas de caminhada pela cidade, vai discutir-se o passado histórico africano, cruzando-o com cultura, arte e música.

Carin e Jonathan Wray, 54 e 56 anos, são dois norte-americanos tentados a trocar a Big Apple por Lisboa. A curiosidade de querer descobrir “o lado menos apelativo” da capital portuguesa juntou-os a Naky e aos restantes, no dia de aniversário de Jonathan. Expandir o conhecimento de um prisma diferente é um dos objectivos do casal. “Ouvimos sempre a perspectiva do colonizador e temos de ouvir a outra parte”, apontam.

Naky nasceu no Togo, país africano que já foi colónia de alemães, franceses e ingleses. Viveu com a mulher na Alemanha antes de se mudarem para Espanha. Só então surgiu o desejo de assentar em Portugal. “Na altura estava à espera dos meus documentos para poder trabalhar e queria fazer algo de que realmente gostasse”, conta, para depois explicar como materializou o seu gosto por história na criação da  African Lisbon Tour . “Sou apaixonado por história e tentei fazer alguma pesquisa e criar uma coisa diferente do que já existia na cidade. Como africano, dirigi-me para a história africana.”

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O percurso inicia-se na Praça do Comércio, mas as rotas escolhidas não são sempre iguais

O togolês, que trabalha numa agência imobiliária, criou o passeio para “falar de escravatura, de como era feita em Portugal e cruzá-la com o processo de descolonização do século XX”. Para tal, recorreu às investigações de alguns historiadores, mas o trabalho de Isabel Castro Henriques e Pedro Pereira Leite, Lisboa, cidade africana, foi um dos principais suportes. O percurso divide-se em três momentos marcantes para a comunidade africana: de 1444 a 1620, período em que Portugal detinha o monopólio das trocas, de 1620 até à última década do século XVIII e daí até à abolição total da escravatura no império, no século XIX.

“Vamos formar uma família durante as próximas horas”, anuncia o guia, enquanto ao longe ecoa o rufar de tambores de músicos de rua e o nevoeiro sobe Tejo acima, encobrindo a Lisnave. São, na maioria, estrangeiros, os que chegam a Naky. O passa-palavra faz-se de boca em boca e através das redes sociais, mas também é possível encontrá-lo através de anúncios de experiências num conhecido site de alojamento.

A caminho do Largo de São Domingos, no Rossio, Carina Guzmán, de 25 anos, não esconde o entusiasmo que a invade ao percorrer a Rua Augusta na companhia do namorado. A jovem de ascendência colombiana cresceu nos Estados Unidos, mas desde sempre teve presente as suas origens. Só a “aprender, reconhecer e olhar para onde vive”, diz, poderá entender a sociedade colonizadora onde está inserida. “É importante olhar para o país onde estás e para o teu país de origem e conhecer aquilo que se passou”, afiança.

Ao dobrar o Largo de São Domingos, entra-se na Calçado do Garcia. No número três da rua que serpenteia Lisboa acima, uma pequena loja de produtos africanos abastece a comunidade local. Lá dentro, o cheiro das especiarias confunde o olfacto, mas Naky já tem tudo tratado com o dono. Vai haver uma prova de pequenos frutos e especiarias típicas, desconhecidas da maior parte do grupo.

“Ponham na boca e tentem adivinhar o que é”, diz o togolês. “Algum palpite?”. O fruto, pão de macaco, tipicamente africano, tem um sabor ácido e cítrico que provoca alguma admiração no palato de quem prova. Daí até experimentarem um rebuçado angolano de gengibre não falta muito, e as línguas vão a tremelear até ao próximo ponto de paragem da visita.

Portugal não quer falar da escravatura

No Largo do Duque do Cadaval, paredes meias com a estação pós-manuelina do Rossio, à mesa de um dos cafés que povoam a praça, o grupo pára para discutir histórias de escravatura e racismo regadas a vinho e cerveja. Alguns participantes questionam Naky  sobre as informações que tem transmitido durante a tarde que agora se precipita a anoitecer.

Para ele, estas visitas nada têm que ver com dinheiro. “Eu tenho o meu trabalho. Faço isto porque cada povo no mundo tem uma história e acredito que conheceres a tua história ajuda a compreender melhor o teu povo”, diz. E, para clarificar a sua posição, exemplifica: “Estamos em Portugal. Se não se souber a sua história, fica-se sem raízes. Um povo sem conhecimento da sua história é como uma árvore sem raiz. O mesmo se passa com os africanos em cada país.”

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Amílcar Cabral, um político e activista guineense que se debateu pela liberdade de Cabo Verde e Guiné, é uma das personalidades referidas por Naky

Ao longo dos três anos e meio de visitas que já leva nas pernas, não foram muitos os portugueses a participarem no passeio. Mas já encontrou quem lhe confessasse desconhecer esta parte da história, “precisamente porque o que lhes foi contado é uma história familiar e institucional — e depois há a outra versão que é a real”.

É um tema debaixo da mesa, acredita. E, apesar de tudo aquilo que ainda tem de ser feito em Portugal relativamente ao passado colonial e esclavagista, há quem lide com ele, “mas não são todos”, reitera. Em França o assunto é tratado da mesma forma. “O Governo francês não está disposto a falar de escravatura e em Portugal também não”, considera.

Dividindo-se entre o inglês e o português, Naky puxa a conversa ao coração: “A história do colonialismo ainda é uma dor para os africanos. Pensar no país colonizador é doloroso.” Esses países acabam por ser uma primeira entrada no continente europeu, porque é mais fácil assim. “Para um togolês, sair do seu país e ir para a América seria mais difícil. Em França, se calhar tem família que o pode ajudar, e assim acaba por ir para lá, porque é mais fácil”, elucida.

Com o miradouro de Santa Catarina vedado, o pôr-do-sol é visto entre grades, mas nem por isso o grupo demonstra menos entusiasmo. É que aqui, conta Naky, os corpos dos escravos eram atirados encosta abaixo, rebolando até à beira-rio. Ficavam lá, inertes, à espera que o tempo passasse por eles.

Nem por isso falta o apetite quando chega a hora de jantar. O repasto, num restaurante cabo-verdiano, na Rua do Poço dos Negros, serve de local de prova ao caldeirão étnico de Lisboa. Desta feita, entre licores cabo-verdianos e cachupa, discute-se a cidade e o que é ser africano em Lisboa.

Naky não acredita na existência de países não racistas. Mesmo em África há racismo, explica. “Falar de Portugal como não racista é idealizar o país, como se aqui não houvesse nenhum problema com cores”. “O que eu vejo é que, em termos administrativos, há racismo”, afirma. O togolês deparou-se com essa realidade na altura de pedir os documentos, e aí sim, teve que enfrentar “discursos em que se pensa, uau, isto é verdade”, conta.

Mas nos quatro anos que leva em Portugal, passou a ver o país como “uma casa”. “Tenho um filho que nasceu aqui. Se ele ao crescer não souber da história do país onde nasceu, então o que irá contar aos seus filhos?”

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