Os inflamáveis do populismo mediático

Não é legítimo banalizar a promoção de criminosos e agentes assumidos da intolerância e do ódio como interlocutores normais.

Por vezes, o gosto da polémica (ou o mero apetite da polémica pela polémica) pode ser extremamente tóxico, sobretudo nestes tempos em que as redes sociais ameaçam dominar e até asfixiar o espaço público, favorecendo a guerra de audiências dos media, especialmente das televisões. Num país de mercado escasso como o nosso, onde os custos de produção e difusão dos meios televisivos não param de crescer, a exploração desenfreada do sensacionalismo e do voyeurismo pelo jornalismo tablóide vem-se tornando a aparente receita mágica para conquistar audiências – e as correspondentes receitas publicitárias –, diluindo fronteiras e critérios editoriais e estimulando uma lei da selva em que a ética e a responsabilidade deontológica são sacrificadas a favor do que é mais visto, consumido e "partilhado" (nem a edição on-line do PÚBLICO escapa a esta última tendência, ao contrário de edições congéneres da imprensa de referência nacional ou estrangeira).

Apenas isso pode explicar que um criminoso conhecido – e condenado – pela prática de actos de violência extrema, alguns deles com inequívocas motivações racistas, tenha sido convidado para uma entrevista "política" num programa televisivo de grande audiência e que também isso tenha sido inicialmente aceite e posteriormente justificado pela direcção do respectivo canal (que, entretanto, e em ostensiva contradição, acabaria por decidir extinguir a rubrica onde fora acolhida essa entrevista).

Faço esta descrição em termos propositadamente abstractos – sem referir o canal televisivo, a personagem convidada ou o conteúdo da entrevista – para tornar mais patente o non sense da situação, ou seja, para mostrar até que ponto pode chegar a guerra de audiências e a curiosidade mórbida ou o apelo aos instintos mais primitivos dos espectadores que alimentam essa guerra. Tudo isso se insere, aliás, na tendência progressiva dos canais de televisão para promover as notícias mais sórdidas de crimes comuns e outros fait-divers em detrimento de temas marcantes da actualidade. Só que a caça ao crime através dos lugares mais recônditos do país tem "custos de produção" que não compensam por vezes a notoriedade conseguida em termos de audiências e põem eventualmente em causa o "modelo de negócio" (não por acaso, o director da principal empresa dos tablóides impressos e televisivos teve já o descaramento de reclamar o direito a subvenções do Estado…).

É pois neste quadro que surge o tal gosto tóxico da polémica pela polémica, projectado pelas "partilhas" nas redes sociais, e no qual alguns colunistas com vocação de tribunos ou oráculos lançam as suas opiniões contra o círculo do "politicamente correcto" (mas cultivando uma forma invertida de monolitismo político). Assim, um golpe ostensivo do populismo mediático mais confrangedor, promovendo as "opiniões políticas" de um criminoso condenado por actos graves de violência e racismo num programa televisivo de grande audiência, pode ser visto como um exercício de liberdade de expressão, como se a liberdade de expressão não tivesse fronteiras de decência e sensatez.

Insisto: em nome da liberdade de expressão e do combate ao populismo não é de todo legítimo inverter a lógica mais elementar do debate político – ou qualquer outro debate civilizado – e banalizar a promoção de criminosos e agentes assumidos da intolerância e do ódio como interlocutores normais. Quando a confusão de valores chega a tal ponto é caso para dizer que os inflamáveis do populismo podem também encontrar-se onde menos se espera.

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