2020: A década do equilíbrio tripolar

As mudanças estruturais no sistema internacional deram origem a uma nova configuração que transformou profundamente a política mundial. China, EUA e Rússia são os principais protagonistas.

Quase por uma lei natural, em cada década do pós-Guerra Fria assistimos a grandes transformações nas relações internacionais. Entre 1990 e 2000, vimos “a história acabar”, sob a forma de um avanço impetuoso da ordem internacional liberal à escala mundial. Os dez anos posteriores foram marcados pelo “choque de civilizações”, traduzido num confronto total entre o Ocidente e o terrorismo islâmico apocalíptico, sobretudo no que os EUA chamaram o Grande Médio Oriente, mas também em quase todas as outras geografias do globo. A seguir, assistimos ao início de uma transição de poder no sistema internacional, com o declínio relativo dos Estados Unidos e a ascensão (ou ressurgimento) da China e da Rússia. A década 2020 vai ser dominada pelo que podemos designar de “equilíbrio tripolar”.

As mudanças estruturais no sistema internacional deram origem a uma nova configuração de atores que transformou profundamente a política mundial e a forma como os Estados definem as suas políticas externas. Os três principais protagonistas passaram a ser: os Estados Unidos, com uma renovada atitude na presidência Donald Trump; a China, que se afigura como o mais importante competidor pelo poder e prestígio internacional; a Rússia, que, além de ser um muito relevante poder nuclear e militar, acaba por ganhar um novo estatuto político ampliado quando enquadrada na competição EUA-China.

Os Estados Unidos são o principal protagonista do equilíbrio tripolar e também aquele que mais se está a modificar. Para isso muito contribuiu o fim do momento unipolar, em que os norte-americanos gozavam de uma superioridade de poder tal que alguns autores escreveram que isso só tinha comparação com o tempo do império romano.

Atualmente, a América é ainda de longe a maior potência mundial, mas está em declínio há vários anos e o diferencial de poder em relação aos mais diretos competidores – China e Rússia – diminuiu, o que é chamado pelos documentos oficial do país de “atrofia estratégica”. Para responder a isso, os EUA entraram em retraimento ainda nos últimos anos da administração George W. Bush e durante toda a administração Barack Obama, reduzindo o seu envolvimento no exterior e voltando a considerar que só há três regiões vitais para a segurança dos Estados Unidos – a Europa, a Ásia e o Golfo Pérsico –, logo é aí que o Washington se deve concentrar.

Já com Donald Trump, os norte-americanos foram mais longe e deixaram ostensivamente o seu papel de potência ordenadora, optando por ser um “Estado normal”, que não tem qualquer obrigação de curar o mundo dos seus demónios e sim de tratar dos seus próprios interesses, desde logo os de segurança, priorizando para isso o reforço maciço das suas capacidades militares: a estratégia “A América Primeiro”. Ambas as orientações estratégicas criaram vazios e a segunda deixou mesmo a ordem internacional sem líder, factos aproveitados pelas outras potências.

Desde logo o segundo grande protagonista da década do equilíbrio tripolar, a China, também ela em profunda transformação há muito tempo (desde o início das reformas de Deng Xiaoping há 40 anos atrás), mas com renovada assertividade após a consagração do poder de Xi Jinping. Se durante anos Pequim apostou numa “ascensão pacífica”, essa disposição alterou-se recentemente devido a um conjunto de condições muito favoráveis.

O país tornou-se em 2014 a maior economia em termos de Paridade de Poder de Compra e, segundo todas as previsões, nos próximos anos deverá tornar-se a maior economia do mundo em qualquer indicador, substituindo os EUA. Está também a construir a segunda maior força militar do mundo e a tentar obter primazia de poder no Mar Sul da China. Tem em curso um grande projeto geopolítico, que visa reconstruir as versões terrestre e marítima da Rota da Seda, conhecido por “Belt&Road Initiative” (BRI).

A sua influência está a alargar-se a várias regiões e países, numa longa geografia que vai de África ao Médio Oriente, da Ásia do Leste (onde, por exemplo, já destronou os norte-americanos como principal parceiro comercial do Japão e da Coreia do Sul) à Ásia Central, tendo ainda começado uma tentativa de penetração na Europa, através da aquisição de posições em setores estratégicos como os portos, a energia, a banca, os seguros e as telecomunicações, entre outros.

Caso seja capaz de concretizar os seus planos, a China terá um enorme poder regional e internacional que vai usar para transformar a sua região e o mundo.

A Rússia vem em terceiro lugar, mas pode muito bem vir a assumir-se como o fiel da balança do equilíbrio tripolar.

Também no caso russo tudo começou um bom tempo antes, nomeadamente com a subida de Vladimir Putin ao poder em 2000 e o início do que já foi chamado de “Putinismo”, uma mistura de um profundo nacionalismo, conservadorismo, repúdio de qualquer fonte de instabilidade, culto da personalidade do líder, uma certa forma de populismo (trazida numa vasta redistribuição de recursos, no uso maciço dos media e das redes sociais e na realização periódica de enormes cerimónias nacionais invocativas de grandes momentos da história russa) e numa estratégia externa revisionista assertiva destinada a refazer a ordem pós-Guerra Fria. Desde logo no subsistema regional europeu, revertendo o “maior desastre geopolítico do século XX” que foi o fim da URSS (segundo o próprio Putin).

Embora esteja em termos globais longe do poder dos EUA e da China, a Rússia esta a tornar-se “grande outra vez” e temos assistido a vários desenvolvimentos ofensivos.

Em primeiro lugar, uma escalada no poder militar, nomeadamente na área nuclear. Em segundo lugar, uma revisão das fronteiras pela força na sua vizinhança próxima com fraca oposição do Ocidente, como se viu no caso da invasão da Ucrânia e da anexação da Crimeia. Em terceiro lugar, o alargamento da sua esfera de influência a outras geografias, como o Médio Oriente, tendo ganho para todos os efeitos a guerra da Síria. Em quarto lugar, o lançamento de uma campanha de propaganda a nível internacional que exalta as qualidades da “democracia soberana” em detrimento da democracia liberal. Em quinto lugar, o recurso a vários meios (redes sociais, fake news, ciberataques, financiamento de partidos) destinados a ganhar influência nos sistemas políticos na Europa Ocidental e de Leste e nos Estados Unidos com o propósito último de dividir a União Europeia e a NATO. Finalmente, a transformação do Putinismo num modelo para muitos partidos que se opõem à democracia liberal na Europa. Há quem aponte este modelo, entre líderes e opinião pública, como um exemplo a seguir para o futuro político da Europa.

Em 2019, e pelo menos em toda a década 2020, as relações internacionais vão ser dominadas por este equilíbrio tripolar. Os EUA, a China e a Rússia vão ser os gigantes do mundo, devendo as nossas atenções concentrar-se na forma como estes países vão gerir a relação a três. Resta saber se a Europa vai tornar-se cada vez mais periférica, com cada Estado europeu a tratar de si, ou se consegue responder levando a integração europeia a um nível sem precedentes, passando a ser o quarto gigante.

Professor na FCSH-Universidade Nova e Investigador no IPRI 

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