“Preocupa-nos que tenha havido uma descida artificial de tarifas”

Ricardo Nunes, o presidente da associação que reúne as comercializadoras de energia do mercado livre, a Acemel, considera que parte da descida das tarifas eléctricas em 2019 foi conseguida com medidas que comportam risco jurídico.

Foto
Daniel Rocha

O presidente da associação dos comercializadores de energia no mercado liberalizado, a Acemel, reconhece que as medidas extraordinárias usadas pelo Governo para reduzir as tarifas eléctricas em 2019, como os cortes aos contratos da EDP e dos produtores eólicos, comportam riscos jurídicos e até podem agravar os preços no futuro. Ricardo Nunes – administrador da Ecochoice e representante dos pequenos comercializadores no conselho tarifário da entidade reguladora, a ERSE – antecipa que o ano de 2019 voltará a ser “excepcionalmente caro” em matéria de energia e teme que os futuros leilões de solar com tarifa garantida venham “onerar os portugueses por mais uma ou duas dezenas de anos”.

O mercado liberalizado está bem e recomenda-se ou falta concorrência?
O mercado liberalizado de energia ainda é, como se diz nos livros, um baby market, tem poucos anos. Não nos podemos esquecer que a primeira privatização da EDP foi há 20 anos e o mercado liberalizado começou a ter maior expressão nos últimos 3, 4, 5 anos. Acho que teve um desenvolvimento saudável e em linha com aquilo que era esperado, mas continua a haver problemas e na Acemel o que temos tentado é alertar as entidades oficiais sobre esses problemas e, mais do que alertar, queremos contribuir para as soluções. 

Qual é o principal?
Há muitos. Por exemplo, no ano passado, a ERSE definiu um preço para o mercado regulado e a partir de certa altura percebeu-se – porque os mercados de futuros assim o indicavam – que este estaria abaixo do preço do mercado liberalizado, nomeadamente para os clientes domésticos. Não houve um ajuste por parte do regulador, o que significa que, para uma franja de pequenos consumidores, durante determinado período do ano foi mais favorável estar no mercado regulado do que no liberalizado. Isso é obviamente um entrave ao desenvolvimento do mercado liberalizado. Mas há mais. Uma empresa que não tenha produção, que seja um comercializador independente, baseia as suas compras num mercado à vista. Como ainda somos uma ilha energética, às vezes as evoluções que acontecem em índices mundiais não têm logo transposição para o mercado ibérico, isso verifica-se pela positiva e pela negativa. Em 2018 houve vários exemplos disso, verificou-se no mercado das emissões de CO2 um aumento brutal e demorou dias para que esse movimento chegasse ao preço do nosso mercado diário. Pelo contrário, houve uma altura em que o preço do petróleo sofreu uma correcção muito forte, mas essa correcção não chegou logo ao Mibel, onde também temos problemas graves de liquidez do mercado de futuros. Depois, temos um mercado muito concentrado, muito atomizado em duas ou três empresas, e isso é obviamente uma barreira.

A ERSE quer alterar os regulamentos para que a EDP Serviço Universal (EDP SU) passe a comprar mais energia no mercado de futuros e, ao mesmo tempo, para monitorizar trimestralmente os preços. Isso poderá resolver parte dos problemas?
Realmente parece-me uma boa medida. O que a ERSE está a tentar é que a EDP SU vá ao mercado de derivados comprar uma parte da sua carteira [a energia para fornecer os clientes regulados], fixando de alguma forma o preço para prazos muito maiores. Isso é muito positivo porque dá aos preços que a EDP SU pode praticar uma maior aderência à realidade. No final, espera-se que isso tenha um impacto positivo junto de todos os portugueses. Para os comercializadores, traz algo que bem precisamos: maior dinamismo e aumento de liquidez no mercado de futuros. O mercado OMIE [plataforma que gere o mercado diário ibérico] é altamente volátil e traz risco aos consumidores e a todos aqueles que têm uma tarifa indexada ao mercado, mas principalmente traz risco aos comercializadores, que não conseguem segurar o preço que estão a oferecer aos seus clientes. É claro que um comercializador que tem produção tem de alguma forma a sua tarefa facilitada.

Por outro lado, o mercado de futuros [OMIP] faz 30% do que fazia há três anos, o que significa que há muito menos liquidez [menos produtos transaccionados] e é muito mais difícil para uma empresa segurar um preço futuro [da energia com que abastece os clientes]. O facto de se obrigar a EDP SU a comprar no mercado de futuros tem essa vantagem de trazer liquidez [mais oferta]. Por outro lado, quando os consumidores domésticos e as empresas olham para as tarifas que são definidas pela ERSE no mercado regulado, estão a olhar como uma indicação de preço e criam expectativas sobre essa indicação de preço. Como vimos, o preço para 2018 foi muito inferior ao preço real, pelo que, no fundo, foi dada uma indicação errada. Se 60% da carteira for comprada no OMIP, sendo que a ERSE tem a possibilidade de trimestralmente fazer uma adaptação dessa tarifa de energia, toda a gente ganhará com a transparência.

Na consulta pública, a Galp queixa-se que a medida colocará o mercado regulado em condições de preço mais favoráveis que o mercado livre.
Ainda não se sabe quais serão os moldes definitivos. Há uma ideia genérica que me parece positiva. Até pelo que aconteceu em 2018, em que a diferença entre preço de aquisição e preço de venda foi suportada por todos nós na tarifa, há uma ideia que é minimizar essas perdas. Podem conseguir-se em simultâneo os dois movimentos; por um lado dar liquidez ao mercado de futuros e, por outro, não dificultar a existência de uma tarifa competitiva no mercado liberalizado. Pode ser, por exemplo, 60% da carteira comprada no mercado de futuros, mas garantir que a sua passagem para a tarifa regulada tem um spread [é agravada]. O assunto ainda não está encerrado, a ERSE está a ponderar. O que temos que tentar todos é que o que aconteceu em 2018 não se repita.

Teria sido desejável que se tivesse revisto trimestralmente as tarifas em 2018?
A ERSE tem uma função muito importante, mas também muito difícil. Tem sido o grande garante da evolução do mercado liberalizado e nunca poderá ser acusada de inacção em relação a isso. É verdade que nos dois primeiros trimestres de 2018 nada fazia adivinhar esta subida acentuada, basta dizer que foi o ano mais caro desde 2008. Antes do último trimestre, a ERSE podia ter feito essa actualização, mas percebemos que não é uma medida politicamente fácil. Depois do que se passou em 2018, em 2019 estará certamente mais atenta. Efectivamente, neste momento, nos preços considerados pelo regulador para a componente de energia para a baixa tensão normal [os domésticos, que são os únicos que podem voltar para a tarifa regulada], o que nos está a preocupar, e olhando tanto para o mercado spot [curto prazo] como para o mercado de futuros, é que em breve poderão já estar desactualizados. Podemos chegar a um ponto em que as tarifas de energia do mercado regulado estão suficientemente baixas para fazer concorrência às tarifas do mercado livre, o que contraria tudo o que se pretende.

Vamos voltar a ter um ano de energia cara?
Não temos uma bola de cristal e o preço da energia depende de muitas variáveis que não controlamos. A forma mais realista de tentar antecipar o futuro é olhar para o mercado de derivados [futuros] e ao dia de hoje eles dizem-nos que vai ser um ano excepcionalmente caro. 

A descida das tarifas reguladas em 2019 fez-se à custa de medidas políticas, inclusive algumas que podem ser revertidas judicialmente. Foram tarifas eleitoralistas? Há motivo para preocupação com custos futuros?
Não achamos que devamos ser nós a dizer se uma medida é mais populista ou menos populista, no entanto, temos a percepção que as medidas extraordinárias aplicadas este ano têm dois problemas. O primeiro é que podem não ser repetíveis nos próximos anos, o segundo é que há medidas contestadas juridicamente e cuja constitucionalidade é questionada. Ou seja, têm esses riscos jurídicos associados, o que pode fazer com que não sejam realizadas em pleno, ou não sejam realizadas de todo. Isso traz risco porque na próxima discussão tarifária essas medidas poderão precisamente ter um sentido contrário [de agravamento].

Estão preocupados?
No fundo podemos estar a falar aqui de uma descida artificial de tarifas e obviamente que isso nos preocupa, mas confiamos que esses riscos também tenham sido bastante ponderados.

Dos sinais que já teve, como avalia o novo secretário de Estado da Energia, João Galamba?
Primeiro tenho de dizer que o antecessor, Seguro Sanches, foi uma pessoa que no entender da Acemel trouxe algumas medidas importantes para o sector. Já tivemos oportunidade de ir apresentar as nossas propostas ao novo secretário de Estado. Acolheu-as com interesse, reconheceu o mérito de algumas, mas está em funções há pouco tempo e temos de dar espaço para percebermos se poderão ou não ser implementadas. Embora algumas já tenham sido incluídas no OE e no último regulamento da ERSE.

Falamos, por exemplo, dos certificados verdes e de garantia de origem, cuja criação está prevista para este ano. Ainda assim, há empresas, como a EDP e a Iberdrola, que já comercializam energia 100% verde. Como é que os consumidores domésticos têm a certeza que...
Não têm.

É uma falácia?
É uma falácia. Neste momento, em Portugal, não é possível a alguém dizer que fornece energia 100% verde.

É publicidade enganosa?
É um tipo de publicidade em que, sem a criação de um mercado de certificados verdes, é muito difícil ter esses números alinhados... Principalmente quando se fala em 100%. Não é neste momento possível fazer esse tipo de afirmação. É uma estratégia de marketing, mas não nos compete a nós fazer qualquer alerta. Têm que ser as entidades que tratam da concorrência a fazer algum tipo de análise sobre isso.

Que expectativa tem em relação aos leilões do solar que estão em preparação com um tecto de 45 euros por megawatt hora?
Em primeiro lugar é preciso perceber que temos um problema, porque foram licenciados 1500 megawatts de renováveis [dos quais 1150 de solar] e só foram construídos 49. Há um problema efectivo que se tem de resolver, até para se cumprir as metas internacionais a que o país está obrigado. Mas há situações diferentes. Há produtores que se queixam de não ter pontos de ligação à rede, e que mesmo que tenham vontade de construir, não estão a conseguir tecnicamente fazê-lo. E há outro tipo de agentes que já passaram os prazos legais para a construção, em que o Governo diz que poderá haver algum tipo de especulação. O que é preciso é perceber quais é que foram os atrasos que foram por responsabilidade das entidades e esses não poderão ter qualquer tipo de penalização. A todos os outros, deverão ser-lhes retiradas as licenças. Outra questão são os leilões. Somos muito a favor dos leilões, queremos que haja concorrência, tanto na comercialização, como na produção, o problema é quando se fala em valores. A nossa preocupação é não querermos onerar os portugueses por mais uma ou duas dezenas de anos. Ainda que o secretário de Estado diga que não é uma feed-in tariff, apesar de tudo, é uma mini-feed-in tariff que se dá, quando até já houve casos de empresas que foram para o mercado pelo mercado, sem remuneração garantida. Deve haver um amplo debate antes de se avançar para uma solução de leilão de tarifa garantida.

Que tipo de debate?
Primeiro tem de haver um diagnóstico claro e saber-se o que aconteceu. E depois tem de haver um debate, porque é uma decisão que vai condicionar uma geração. Leilões sim, mas se calhar outro tipo de leilão.

Quem deve participar no debate?
O Governo tem de auscultar os vários agentes do sector, as associações e o regulador.

E envolver a Assembleia da República?
Sim, acho que tem de se envolver os restantes partidos.

Preocupa-o não haver desenvolvimentos na separação de marcas da EDP?
Essa separação foi anunciada há algum tempo pela ERSE e nós achamos que é importante que se faça para a transparência do sector. Não se trata de nada contra a EDP que tem feito um excelente trabalho nas áreas reguladas, mas trata-se claramente de fazer com que as pessoas percebam que há uma EDP que actua em monopólio [EDP Distribuição] e outra que actua em mercado [EDP Comercial]. Um exemplo prático de como a separação é necessária foi o que aconteceu com a tempestade Leslie. A EDP Distribuição, tal como está no seu contrato regulado, actuou em conformidade, e actuou muito bem, no sentido de resolver problemas. Mas isso não deve ser confundido com o trabalho que a EDP Comercial tem nesses mesmos lugares e acontece que muitas vezes as pessoas não fazem a distinção. Espanha está neste momento a fazer a mesma discussão e parece que a EDP é um dos apoiantes da ideia de separação, por isso não me parece que vá haver problema e que [aqui] a curto prazo irá acontecer.

Quem deve pagar as alterações?
A EDP. Quando o Governo passou de Governo de Portugal para Governo da República Portuguesa em todos os documentos que tem, e segundo me parece não teve uns custos inacessíveis, parece-me que, no caso da EDP, não será uma mudança assim tão expressiva. E passar isso para os consumidores não é apropriado, porque os consumidores são o agente que deve ser esclarecido.

Este ano ficou marcado pela falência de mais um comercializador, a Elusa, depois de duas situações semelhantes em 2017. O que é que isto diz sobre o mercado?
É preciso referir que nenhuma dessas empresas era membro da Acemel e portanto não conheço em profundidade a situação. Mas penso que é preciso separar as águas. As três eram de origem espanhola, e duas delas, segundo consta, tinham a mesma gestão. Houve claramente um problema de avaliação de risco por parte de quem regula e por parte das entidades que atribuem as licenças.

Quem é exactamente que avalia o risco?
Quem atribui a licença é a DGEG e a ERSE, como regulador do sector, tem essa incumbência.

Leram mal o que se podia vir a passar com estas entidades?
Não leram mal. Penso que a ERSE inclusive já trabalhou sobre isso e uma das medidas que propõe é de alguma forma apertar os pedidos de novas licenças, à semelhança do que faz o sector financeiro, em que há exames de idoneidade, em que se olha para o histórico das pessoas, porque as empresas são feitas por pessoas. Pela positiva devo dizer que houve um sinal, no caso da última, a Elusa, que nos animou e que foi que, antes de os seus clientes passarem para o mercado regulado [para a EDP Serviço Universal], houve movimentos concorrenciais que permitiram que alguns clientes passassem directamente para outros comercializadores do mercado livre. Portanto houve capacidade de absorção por parte de algumas empresas desses clientes que estavam numa posição de maior fragilidade.

Os comercializadores mais pequenos queixam-se de asfixia financeira com os prazos e garantias bancárias que lhes são exigidos para pagar à EDP Distribuição e à REN o uso das redes. Estes dizem que o alargamento de prazos introduzido pela ERSE deixa o sistema mais frágil. No que ficamos?
Penso que é evidente que para uma empresa que inicia actividade num sector que exige tantos recursos como a energia, e principalmente num sector que se quer tornar totalmente liberalizado para que os consumidores tenham a sua vida facilitada e a preços mais baixos, as exigências financeiras que lhe são solicitadas são exageradas. Embora perceba que há um risco do sistema que tem de ser acautelado, penso que a última directiva da ERSE sobre a gestão de riscos e garantias vem trazer mais elasticidade. Vamos aguardar para ver como será o futuro quando estiver implementado. Aqui há dois interesses opostos e cabe ao regulador, como supervisor máximo deste negócio, perceber até onde pode ir com cada um dos players e onde se pode situar entre a exigência natural do distribuidor e a necessidade que os comercializadores têm de ter um sistema mais flexível em que possam crescer. Se for demasiado rígido, o que acontece é que será sempre muito difícil ter um mercado mais concorrencial.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários