Um ano de crises nos três pilares que sustentam a Europa – não se prevêem melhorias

Macron está em queda, mesmo que não seja fatal. É sempre difícil substituir a actriz principal. O Brexit e Trump são duas faces da mesma moeda. 2018 foi também (ou principalmente) a crise dos três grandes pilares da União Europeia. Não se prevêem melhorias.

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Talvez tenha sido esta a marca mais relevante do ano europeu que agora chega ao fim: a instabilidade, para dizer o mínimo, que vivem os países da União Europeia habitualmente designados por “três grandes”, aqueles que, por força da sua dimensão, da sua economia ou da sua influência política, têm um peso quase sempre determinante no destino da Europa. É quase desnecessário designá-los: Alemanha, França e Reino Unido. Os dois últimos são duas velhas nações que já foram impérios, habituados a exercer no mundo uma influência que vêem como indo além do seu peso relativo, que ocupam dois dos cinco lugares permanentes no Conselho de Segurança e que possuem uma capacidade militar ainda hoje relevante. A Alemanha ainda é um caso à parte. O seu poder vem-lhe dos 83 milhões de habitantes, mas sobretudo do peso da sua economia, a quarta do mundo, atrás dos EUA, da China e do Japão, e o pilar fundamental da moeda única europeia. A crise financeira, que rapidamente se transformou numa crise do euro, aumentou ainda mais esse poder, permitindo-lhe ditar as condições da sua resolução e as regras do seu funcionamento futuro.

Continua, no entanto, a ser uma potência relutante graças à sua história recente. É uma nação mais jovem, imperial na Europa mas não fora dela. Ocupa o centro da integração europeia, no sentido em que nada se pode fazer contra a sua vontade, mesmo que alguma coisa se possa fazer sem ela. Quer liderar a Europa mas (ainda) não quer pagar os custos inerentes a quem lidera. Não é uma potência clássica, como os seus dois grandes parceiros europeus, mas evoluiu durante a crise e, sobretudo, quando se viu confrontada com a chegada à Casa Branca de um Presidente nacionalista que rasgou a política que os EUA definiram para a sua relação com a Europa desde a II Guerra e que fez precisamente da Alemanha o seu “principal inimigo”. Esta evolução é recente. Basta lembrar que, quando Paris decidiu intervir no Mali (2014), Berlim comentou, ainda que em voz baixa, que não tencionava pagar as guerras da França. Hoje dá apoio às forças francesas no Sahel para conter a expansão do fundamentalismo islâmico. A grande viragem da política externa alemã deu-se, no entanto, em 2014 quando a Rússia invadiu o Leste da Ucrânia e anexou a Crimeia. O reforço da capacidade militar europeia, a começar pela própria, passou a figurar no topo da sua agenda política, acentuado pelas inúmeras declarações do Presidente americano sobre a irrelevância da NATO.

“Os Estados Unidos pagam pela protecção da Europa e perdem biliões no comércio. [Os aliados] têm de gastar imediatamente 2% do PIB na defesa e não em 2025” – o “grito de guerra” de Trump na primeira cimeira da NATO, dirigido em primeiro lugar a Berlim. “Quando ele fala dos aliados, quer dizer Alemanha. Quando fala da União Europeia, quer dizer Alemanha”, diz o antigo embaixador americano na NATO, Ivo Daalder, citado pela New Yorker. A Alemanha deixou de poder não ouvir. Uma forte aliança com os Estados Unidos e uma sólida relação com a França foram os dois pilares da política externa alemã desde a fundação da República Federal. O primeiro pilar está posto em causa pela actual Administração americana. A adaptação não é fácil. “É como se os nossos pais nos dissessem, depois de muitos anos, que afinal nunca gostaram de nós”, diz um diplomata alemão citado pela New Yorker (How Trump Made War on Merkel and Europe, de Susan B. Glasser).

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Angela Merkel Reuters

Internamente, a Alemanha também está em profunda mudança, o que acaba por ter um forte impacte na União. Estabilidade era o nome do sistema político alemão. Deixou de ser. O velho sistema de três partidos, com os liberais a fazerem de charneira deu lugar a um sistema de seis, incluindo dois que defendem soluções extremistas – sobretudo à direita, com a AfD, mas também à esquerda, com o Die Linke. Ao mesmo tempo, o declínio dos dois grandes partidos centrais, a CDU e o SPD, foi pondo em causa a anterior estabilidade política, forçando Angela Merkel em três dos seus quatro mandatos a ter de governar com uma “grande coligação”.

A chave para explicar o que aconteceu é, em primeiro lugar, a unificação alemã no início dos anos 1990 do século passado. A crise do euro, a crise da imigração, a própria crise europeia concluíram a fragmentação política, afectando também, de uma forma ou de outra, a própria natureza dos partidos. O desenlace mais negativo deu-se nas últimas eleições, em Setembro de 2017, quando a AfD conseguiu eleger 94 deputados para o Bundestag, adquirindo o estatuto de líder da oposição. A abertura aos refugiados da guerra na Síria em 2015 abriu feridas antigas, num país que só recentemente alterou a lei da nacionalidade no sentido de atribui-la a quem não tenha sangue alemão. A extrema-direita cavalgou os efeitos da imigração, que substituiu o euro como o tema central da política alemã.

As duas crises somadas – do euro e dos refugiados – acabaram por criar novas tensões na relação entre a Alemanha e a União Europeia, acentuando uma tendência “unilateralista” que alimentou velhos e novos anticorpos nos seus parceiros europeus. A construção do Nord Stream 2, para trazer directamente o gás russo para a Alemanha (está prevista a sua conclusão em 2019), contornando a Ucrânia, a Polónia e os Bálticos, continua a incomodar muitos parceiros europeus e a própria Comissão. Berlim sente o incómodo mas lembra que a Rússia depende muito mais das divisas estrangeiras do que a Alemanha depende do seu gás. A confiança e a admiração que a chanceler conseguir conquistar atenuam alguns receios. Mas Merkel, caminha rapidamente para o seu ocaso, fazendo temer um vazio de liderança, mesmo que transitório, no coração da Europa. A chanceler abandonou em Dezembro a liderança da CDU, fazendo-se substituir por Annegret Kramp-Karrenbauer, a herdeira que ela própria escolheu, e tencionando cumprir até ao fim o seu mandato, que termina no Outono de 2021. Mas quando se ocupa o centro do palco durante tantos anos, nunca é fácil substituir a actriz principal.

Do céu ao inferno

Do outro lado do Reno, a eleição de Emmanuel Macron em Junho de 2017 foi olhada simultaneamente como um alívio e uma lufada de ar fresco. As credenciais europeístas e reformistas do Presidente francês pareciam ser um bom sinal para o reforço do eixo Paris-Berlim mas também para uma nova ambição da Europa, num mundo que lhe é cada vez mais adverso e que, por isso, lhe exige cada vez mais. Macron operou uma revolução no sistema partidário francês, criando do zero um grande partido de centro radical, a República em Marcha, destruindo pelo caminho o velho sistema partidário assente no Partido Socialista e nos Republicanos, e contendo a progressão constante da Frente Nacional (hoje União Nacional) de Marine Le Pen. Queria “refundar” a Europa a partir do reforço político do núcleo central dos países do euro e de uma geometria variável em que os restantes avançariam ao seu próprio ritmo. Durante um ano, esperou por uma resposta consistente de Berlim às suas ideias. Merkel deu algumas entrevistas respondendo com demasiada prudência ao desafio de Macron, mas a sua resposta à questão central da reforma da zona euro ficou muito aquém das propostas do Presidente francês. Não saindo da sua posição inicial, Berlim quer partilhar regras e responsabilidades, mas não os riscos inerentes.

A explosão social dos “gillets jaunes” foi um golpe duro no poder e no prestígio de Macron e pode vir afectar o seu ambicioso programa de reformas, revelando um mal-estar social profundo de um país que perdeu competitividade com a globalização mas que se mantém fiel a uma cultura de igualdade, sustentada por um modelo social que, também ele, está em forte tensão. Macron desceu à Terra a uma velocidade meteórica, o que não quer dizer que não possa ainda recuperar. As sondagens indicam que nenhum partido está a colher os frutos da sua queda, a não ser Marine Le Pen. Nem a extrema-esquerda de Jean-Luc Mélenchon, que se colou aos protestos, nem o centro-direita, cada vez mais de direita, de Laurent Wauquiez, nem os socialistas em vias de extinção de Olivier Faure.

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Emmanuel Macron EPA

As eleições europeias serão um teste à volatilidade da paisagem política francesa. A ideia de um grande partido europeu constituído em torno do programa do Em Marcha deixou de parecer realista. O eventual sucesso de Le Pen nas europeias, que não é difícil em eleições em que o Governo não está em causa, será mais um aviso aos parceiros europeus. Tal como a Alemanha, ainda que por razões diferentes, a França está no centro da integração europeia e funciona como o país charneira entre o Norte e o Sul. Em Maio de 2017, a elite politica alemã, depois de um momento de pânico com a possibilidade da eleição de Le Pen, saudou um Presidente reformista. No dia seguinte, regressou tranquilamente ao “business as usual”. Macron fez as reformas que prometeu mas que vão levar tempo a produzir efeitos. O risco de paralisação da França devia voltar a preocupar Berlim.

A estranha deriva britânica

Resta a outra “potência” europeia que, como a França, já foi o centro de um império. Está de partida e, o que é pior, ainda não se sabe como. Em Junho de 2016, o primeiro-ministro conservador David Cameron lembrou-se de sujeitar a referendo a permanência do seu país na União Europeia, convencido que o resultado só poderia ser um. Convocou-o para resolver as eternas divisões que minavam (e minam) os conservadores em torno da questão europeia. Jogou o destino do seu país com o desfecho conhecido. Desde então, o “Brexit” transformou-se num factor de profunda divisão no Reino Unido, abrindo feridas antigas e dilacerando os dois grandes partidos em que assenta o sistema politico – o Labour e os Conservadores.

As promessas dos defensores da saída revelaram-se espúrias. As negociações foram penosas. O resultado obtido pelo Governo de Theresa May parece não agradar a ninguém. A sua aprovação em Westminster está longe de estar garantida, abrindo as portas à possibilidade de um saída sem acordo que seria catastrófica para a economia britânica e provocaria um enorme choque na economia europeia.

O futuro das ilhas britânicas, cuja história está intimamente ligada à do velho continente, não podia ser mais incerto. O efeito de uma saída, seja ela ordenada ou caótica, sobre o xadrez político europeu é inquestionável. Dois pilares não são o mesmo que três. Durante décadas, um entendimento entre os “três grandes” foi condição essencial para que os outros se pudessem reconhecer nas decisões europeias mais importantes. Em matéria de economia ou em matéria de segurança e defesa ou de política externa. O Reino Unido (com o apoio alemão) foi o país que mais se bateu pelo alargamento a Leste, abdicando desde o primeiro dia do período de transição estipulado nos tratados de adesão para a livre circulação dos novos cidadãos europeus (só a Irlanda e a Suécia seguiram o mesmo caminho). Hoje, fechar as portas à imigração, incluindo a europeia, parece ser a primeira das motivações para a saída.

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David Cameron Reuters

Tal como em Berlim, também em Londres ninguém previu a chegada à Casa Branca de um Presidente disposto a destruir a ordem liberal construída pelos EUA depois da II Guerra. A “relação especial” com os EUA está posta em causa, precisamente quando o Reino Unido mais precisa dela. “O Presidente americano está a ajudar a criar um mundo onde as velhas regras não se aplicam e aquilo que era dado como adquirido, como a reivindicação britânica da ‘relação especial’ com Washington passou a ser um anacronismo embaraçoso”, escreve Simon Tisdall no The Guardian. “Fora da UE o Reino Unido enfrenta um futuro sombrio no mundo de Trump.”

Um Labour cuja liderança, ao contrário das anteriores, não rejeita a saída da Europa, para dizer o mínimo, é outra inesperada coincidência. Em Bruxelas, traçam-se planos de contingência para uma saída desordenada. Como se fosse um pequeno percalço. Em Londres, ninguém parece dar-se conta (à excepção talvez de Theresa May) de que se está a caminhar para o abismo.

E o resto

Apesar da salvação in extremis do euro e da recuperação económica, os sinais de desunião e de fragmentação da Europa são evidentes. Os nacionalismos crescem. Na Itália, que durante décadas desempenhou o papel de bom europeu, o sistema partidário implodiu há muito, dando origem a um governo assente em dois partidos, um populista e outro de extrema-direita, cujo amor pela União Europeia é muito relativo. Os países mais ricos do Norte tiraram apenas uma conclusão da crise: não pagar nem um cêntimo para ajudar à convergência económica dos seus parceiros do Sul e do Leste. Justamente uma condição indispensável para a sustentabilidade do euro e para a coesão política da própria União.

Órfã da América, com a crescente pressão militar da Rússia junto à sua fronteira Leste e a capacidade de desestabilização de Moscovo em demasiados países, sem uma liderança forte e uma visão estratégica, a Europa continuará no próximo ano vulnerável aos ventos internacionais e às debilidades das suas democracias.

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