Arquivos particulares e responsabilidade pública

Se, dada a sua extensão e importância, os arquivos de âmbito estatal estão mais expostos ao escrutínio público, os arquivos privados merecem também a nossa atenção.

A 15 de Setembro de 2014 o Jornal de Notícias divulgava que o Estado português tinha "mais de cinco mil quilómetros (como ir do Porto a Moscovo) de arquivos por organizar". Nem tudo deve ser conservado, mas é necessário conhecer o valor informativo, a relevância enquanto prova factual e a importância histórica desta documentação para se determinar o seu destino final. A entidade responsável por definir os critérios de arquivo dos documentos produzidos pela administração pública, a Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), tem dedicado parte substancial dos seus esforços a esta tarefa. Os arquivos privados também estão sujeitos às normas emanadas da DGLAB, que deve ainda apreciar as regras de acesso estabelecidas pelos seus proprietários para posterior homologação pela respectiva tutela governamental.

Dada a sua extensão e importância, os arquivos estatais estão muito expostos ao escrutínio público, porém alguns arquivos privados merecem a nossa particular atenção, nomeadamente, o Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares e o Arquivo Ephemera, biblioteca e arquivo de José Pacheco Pereira.

O arquivo da Fundação Mário Soares (FMS), que foi pioneiro na adopção de soluções de digitalização e disponibilização de documentos online, tem hoje à sua guarda uma quantidade impressionante de acervos de opositores ao Estado Novo e de dirigentes de Movimentos Nacionalistas Africanos e de Timor-Leste, inventariados e disponíveis ao público. Também se deve a este arquivo o projecto Casa Comum, uma plataforma agregadora de informação que é hoje o maior repositório digital de documentação em língua portuguesa.

Com a morte de Mário Soares em 2017, o futuro do arquivo tornou-se incerto e recentemente o jornal PÚBLICO noticiou que se pondera o seu desmantelamento, sendo provável que muitos dos fundos documentais venham a ser incorporados na Torre do Tombo ou sejam devolvidos aos proprietários, que os colocaram à guarda da FMS a troco do tratamento e da disponibilização pública das suas colecções. Estima-se que mais de 90% dos documentos do arquivo da fundação estejam nesta última situação, incluindo o arquivo pessoal de Mário Soares. Se os dirigentes da FMS optarem pelo desmembramento do arquivo, os responsáveis pela política nacional de arquivos devem contribuir para assegurar a sua integridade. Tal não quer dizer que a DGLAB deva incorporá-lo na Torre do Tombo, pois a vocação deste organismo é guardar documentos produzidos pelos organismos centrais do Estado. Mas há alternativas, como a sua integração na estrutura de arquivos da Câmara Municipal de Lisboa, mantendo-se o funcionamento nas actuais instalações.

Também o Ephemera, arquivo privado que reúne documentação para a história dos movimentos sociais, requer cuidados. Trata-se de uma colecção constituída por materiais herdados, adquiridos e doados, cujo conteúdo Pacheco Pereira tem vindo a divulgar através de diversas iniciativas de que se destaca a criação de um website, um programa de televisão e várias publicações. Porém, o acesso público a este arquivo não tem sido garantido nem mesmo a investigadores. Para prestar um serviço público não basta proclamar o ser cada vez "mais público" o acesso a estes "arquivos privados" nem mesmo utilizar como epígrafe no website a afirmação de Samuel Johnson — "the two offices of memory are collection and distribution"; é necessário que o serviço seja de facto público.

Outra questão que se coloca relativamente ao Ephemera é a de saber o que lhe irá suceder no futuro. Seria desejável que se evitasse algo semelhante ao que ocorre actualmente com o arquivo da FMS. Tal poderia ser acautelado se a colecção fosse integrada num arquivo verdadeiramente vocacionado para o serviço público, alinhado com os procedimentos definidos nacional e internacionalmente para o tratamento documental, que garantisse a sua consulta a todos os interessados, e com financiamento dedicado ao seu tratamento, estudo e disseminação. Para este efeito, talvez não fosse descabido apoiarmos Pacheco Pereira na constituição de um fundo.

Independentemente das soluções adoptadas, tanto o arquivo da Fundação Mário Soares como o de Pacheco Pereira são fundamentais para a compreensão da história contemporânea pelo que requerem a atenção imediata dos responsáveis políticos.

Rita Almeida de Carvalho é i​nvestigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

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