Da Austrália com groove

Amigos de longa data, Winston Surfshirt e os Polographia decidiram, finalmente, juntar-se, caso para dizer que “assim só se estraga uma casa” – é que, de facto, os rapazes partem tudo. Três, a conta que o groove fez!

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Quem diria que da Austrália chegaria um dos grandes discos de 2018, alguns dos sons mais funky e groovescos do ano?

Numa indústria largamente (mediaticamente) dominada pela produção americana (é ver as principais listas de 2018 e como escasseiam, nos primeiros lugares, nomes fora dessa geografia, com as grandes excepções de Rosalía e Robyn), quem diria que da Austrália chegaria um dos grandes discos deste ano? E não, não estamos a falar de Nick Cave: se tanto Winston Surfshirt como Polographia (Moktar Sharouny e Daniel John Stapleton, amigos desde a escola secundária) eram já, a solo, dois tesouros bem escondidos (demasiado) de uma nova geração de músicos australiana, é caso para dizer que, no momento em que se juntaram as comadres, descobriram-se as verdades – no caso, alguns dos sons mais funky e groovescos do ano, de fazer corar de inveja aqueles que, nos EUA (justamente), berço da música negra, fazem desta o seu património e matéria-prima.

“Eu era um grande fã do Winston quando ele ainda só era conhecido localmente. A primeira vez que o vi foi numa house party, mas não o ‘vi’ realmente porque a festa estava completamente a abarrotar! Certifiquei-me de que estaria no seu concerto seguinte em Sydney e arranjei um lugar mesmo junto ao palco. Basicamente, passei-me com o som dele… Procurei-o depois do concerto e o resto é história… Somos os melhores amigos desde então!”, conta Mok ao Ípsilon.

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Winston Surfshirt, look à John Lennon (mas não é só o visual: o ex-Beatle é, com André 3000, a sua grande referência)

Sly, single do LP Friends (2016) dos Polographia (disco que, depois da estreia, mais electrónica, com Natural em 2015, marcou uma aproximação ao disco e à pop), no qual a dupla convidou Winston Surfshirt para o microfone, indiciava aquilo que este EP a seis mãos vem agora confirmar: que uma importante fatia da música mais fresca, cool e charmosa do momento mora aqui mesmo, na suspeita Sydney. Mais concretamente, no subúrbio balnear de Manly, onde muito provavelmente podemos encontrar, num destes dias em que os Celsius andam por lá entre os 20º e os 30º, Winston, look à John Lennon (mas não é só o visual: o ex-Beatle é, juntamente com André 3000, a sua grande referência), a bebericar uma margarita – em mangas, o leitor já advinhou, de surfshirt. Paisagem, cores e temperaturas (tudo o que se vê na capa do EP), portanto, que, na música, pouco associamos, de facto, ao país dos AC/DC (daí não se afigurar estranho que, aqui, Sydney se confunda com Los Angeles) – na melhor das hipóteses, aquilo de que os Poloshirt mais perto gravitam é de uma imaginária fusão entre os INXS, os Bee Gees e os Tame Impala (e, no espectro mais dançante, dos recentes Confidence Man).

Segundo Winston (que do homem a solo se converteu, entretanto, numa banda de seis elementos), “não há muita gente em Sydney a tocar funk ou disco, mas há excelente música a ser feita neste momento, hip-hop e R&B realmente bom”, ao que Mok assente afirmando que “a cena australiana actual está a explodir com novos talentos e sonoridades”.

Geografias à parte, os Poloshirt tanto dialogam com algum do som contemporâneo mais entusiasmante – o de Connan Mockasin (vizinho neo-zelandês), Toro y Moi, Jungle, Benny Sings ou Silk Rhodes (sobretudo na voz de Sasha Desree) –, como, em anos mais distantes, o de Prince, Bobby Nunn ou o dos saudosos Hall & Oates dos oitentas. Basta e esplêndida família, como se vê. Falámos nos trabalhos a solo dos Polographia, mas o que dizer de Sponge Cake, brilhante estreia em 2017 de Winston (Elton John, por exemplo, declarou-se fã) e uma das melhores peças de funk, pop, soul e rap que a última década nos deu? Polo(graphia) + Shirt (de Surfshirt), então: terá Winston mudado de camisa ou foram os primeiros a trocar de “grafia”, de linha, sonora? Em rigor, nenhum dos dois, não se constituísse o EP num encontro absolutamente natural, orgânico, de ambos os universos, não obstante a abordagem vocal de Winston afastar – e bem, no caso – a feição mais electrónica do som original dos Polographia. Íamos dizer “a feição mais dançante”, mas íamos dizer mal: tal como no trabalho a solo de Winston, também este EP, além de uma lição de bom gosto, é uma sponge de muita coisa: funk, hip-hop, disco, soul, synth-pop, R&B, uma caleidoscópica pequena-grande-maravilha cujo único defeito é incluir apenas sete faixas.

“Quis trazer uma mistura de soul old school, hip-hop e electrónica, algo que, soando cru, não deixasse de ser agradável e smooth”, diz-nos Mok, que assegurou, juntamente com Stapleton, a produção do EP, deixando para Winston, ele próprio produtor e multi-instrumentista, as letras e a voz. Uma pérola (ou, se quisermos, um daqueles espantosos corais que abundam na Grande Barreira de Coral australiana), por isso, cujo efeito imediato, depois de escutada à exaustão – e à laia de não se poder acelerar o futuro –, é o de nos fazer voltar, augados, ao disco a solo de Winston. “A melhor parte deste projecto é que eu não tive de pensar demasiado, aconteceu tão naturalmente que não tive de alterar o meu estilo ou a produção. Trabalhar com o Winston é algo especial, porque estamos no mesmo comprimento de onda. Começo sempre por lhe enviar uma demo de um instrumental e, basicamente, no próprio dia ele envia-me uma canção inteira!”, conta Mok.

Surfista solitário

Dissemos, aqui há umas semanas, que What’s the use? e Cheers (de Mac Miller e Anderson .Paak, respectivamente) se constituíam nas grandes malhas funk de 2018 – pois está na altura de lhes juntar Too good to be true (aquelas palmas iniciais a prenunciar o júbilo que está para vir) ou Basic, canções nas quais, como é sua imagem de marca, Winston tanto rappa como canta. Com a particularidade de o seu rap – como, paradigmaticamente, o do malogrado Mac Miller – nunca ser “apenas” rap, antes conservando um inexpugnável e elegantíssimo recorte melódico. Algo que pode parecer relativamente fácil ou simples, mas que muito poucos rappers não logram alcançar, escassos cantores tout court havendo, por sua vez, a saber trabalhar desta forma a palavra mais falada (veja-se, a título de exemplo, o canhestro modo como John Mayer interpretou a Small worlds no concerto-tributo a Miller). Duas canções que emulam, aliás, o nome da editora independente que carimba o EP, a também australiana Sweat It Out! (com um catálogo tão obscuro quanto interessante, especialmente incidente na electrónica contemporânea), outra forma de sublinhar o modo como apontam para a pista de dança, corpos sacudindo o suor na maior das reinações.

Falámos atrás em Miller e veja-se a forma airosa como os sopros inundam, como acontecia na Ladders de SWIMMING, o refrão de Too good to be true (que só peca pela voz feminina, a quem se pedia potência nos graves), terminando depois, na percussão e no baixo, a evocar a Sexual healing de Marvin Gaye. Título (Too good to be true) que, fraseado por Winston, o ouvinte quase se ouve a dizer a si próprio tal é a descarga de doçura e fineza. Mas, mais importante, canções que ilustram a versatilidade vocal de Winston, que, cantando, vai alternando entre o seu tom regular (ora agastado, acossado mesmo, ora mais efusivo; sexy em qualquer dos casos) e um delicioso registo sotto voce (quando não um superior falsete, como o que se lhe ouve em Be about you do seu álbum a solo). Em todo o caso, uma voz sempre – mas subtilmente – texturada pela rouquidão, o grão que dá a sensualidade toda a Ima give em (“She makes me feel I’m Carole King/ Natural, natural, pass the wedding ring (…)/ I’m trying to dance/ Give me something like/ Something to grasp and a Barry White/ They just wanna hear the love songs/ I just wanna hear some funk songs!”, exorta o convidado Nasty Mars).

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Uma importante fatia da música mais fresca, cool e charmosa do momento mora aqui, na suspeita Sidney
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A melancolia também paira por aqui, é certo (as teclas e o synth chuvosos de All I think is about you, logo contrabalançados pelo baixo “bouncesco”), como se Winston fosse o surfista solitário de Jorge Ben Jor, mas a atmosfera é, essencialmente, sedutora e solar, de pathos reduzido. O ouvinte passeia por entre contos boy meets girl (ou meetings que acabam em misunderstandings) ligeiros e bem-dispostos, tocados e arranjados de forma invariavelmente impecável (ao vivo, Mok fica com a guitarra e os synths e Stapleton na bateria, acompanhados por Winston no microfone e Bik Julio, da banda deste último, no baixo). Beaterlude – que, como o nome indica, é um interlúdio instrumental mais cadenciado a dividir o EP a meio – são escassos segundos de pura ginga que parecem saídos do Prince enamorado pelo hip-hop dos anos 80/90, com aquele orelhudo, sexualíssimo, “Do it like/ Do it like you dare” a puxar pelo cardio dos corpos. Os BPM hão-de desacelerar depois e ceder o lugar a Thomas, balada charmosamente tristonha em que ouvimos Winston aceitar, resignado, cheio de mel, o perigo intrínseco ao melhor dos precipícios (“You can be a menace to me…”). Num álbum cujo interlocutor é sempre a amada (apetece evocar a recriação que Gabriel O Pensador fez da canção de Ben Jor: “Cheguei na areia e a sereia entrou no mar/ E só de onda eu me deitei onde ela deita/ Tubarão em pele de cordeiro, um ataque de surpresa/ Predador virando presa, uma sereia com pernas de mulher/ Perfeição ou perversão da natureza?”), Pinned upon, marcada de fio a pavio por uma musculada mas sensual linha de baixo (muito new wave, também), encerra o disco num auto-questionamento mal (ou não) resolvido. “I can't be the one you want me to be/ Ain't as easy as it first seemed to me/ But be nice to have someone like you/ That I can be myself with too/ It ain't that simple, I just keep holding on”. Resolvido, inebriado, ficou, porém, o ouvinte, e por essa razão cantarolará, em uníssono com Winston (trocando apenas o “10 years” por “7 songs”), “And I can't get enough/ 10 years and I still got the crush/ I just can't get enough/ 10 years and I still get the rush” (a boa notícia é a de que o trio tem projectado o lançamento de mais música).

Mantenhamo-nos atentos (ouvintes e promotores): um dos trilhos mais entusiasmantes da música dos próximos anos vai passar por aqui.

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