Um brinde aos barões, condessas e monges que criaram este vinho de Bordéus

Em cada château, há uma história para descobrir. Nas casas produtoras dos grands crus de Bordéus, o aroma a vinho não é o único ingrediente capaz de inebriar os visitantes. Por aqui, também se assiste a um desfile de honra, glamour e arte.

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Propriedade PichonBaron Serge Chapuis

Se alguém lhe disser que para partir à descoberta das grandes vinícolas é preciso ser um entendido na matéria, conhecer de cor as castas de cada região e enumerar de trás para a frente todas as fases de produção de vinho, pode arriscar-se a contrariar a tese. Garantia de quem andou a palmilhar uma dezena de châteaux de Bordéus – exactamente, a maior região vinícola de França (quase 112.000 hectares de vinhedo) – e que, até então, nunca tinha olhado para uma lista de grands crus. Acredite: mesmo não sendo um expert, ficará rendido aos atractivos que cada um dos produtores “esconde” dentro das suas propriedades. Seja nas suas caves subterrâneas – algumas têm túneis, com vários quilómetros de extensão –, no seu vinhedo ou nos seus palácios.

No fundo, este é um périplo igualmente repleto de tradição, arte e glamour. Em cada vinícola, há sempre algo para descobrir e conhecer. Estórias protagonizadas por barões, condessas e monges, que, apesar do passar dos anos, continuam a ser contadas nos “castelos” mais antigos da região. Foi isso – e muito mais – que pudemos constatar ao longo de uma viagem que também foi uma espécie de curso sobre produção de vinhos.

À boleia da VSX Club, empresa brasileira de enoturismo – que está, agora, a lançar-se também em Portugal –, fomos conhecer as caves e adegas de onde saem alguns dos melhores (e mais caros) vinhos do mundo. Com direito a degustações, como não podia deixar de ser, em cada uma delas – a uma média de dois vinhos por château, é só fazer as contas para chegar ao número final.

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Também houve tempo para nos sentarmos à mesa, a provar algumas das melhores iguarias da região, com essa certeza, deixada por um chef de cozinha local: em Bordéus, a prioridade são sempre os vinhos. “A comida é feita a pensar nos vinhos”, assegura Claude Broussard, chef do restaurante Le Saint-Julien (localizado na sub-região de Médoc). Ditame próprio de um território que conta com cerca de 2000 anos de história na produção de vinhos e onde existem, actualmente, cerca de 6500 viticultores.

“Bordéus é a meca”, afiança o nosso guia, Juan Carlos, filho de pai português e mãe espanhola, nascido e criado naquela região francesa. “Se existirem 100 grandes vinhos no mundo, 50 serão, certamente, daqui”, acrescenta o luso-descendente, destacando “o terroir perfeito” da área localizada “entre o oceano e o rio”. Uma região composta por várias sub-regiões, milhares de hectares de vinhedo e centenas de châteaux. Aproveite para entrar dentro de dez, três dos quais classificados em primeiro lugar na hierarquia criada em 1855 (para a Exposição Universal de Paris) e todos eles com vários séculos de história.

A arte que decora os rótulos e não só

Primeira paragem: Château Mouton Rothschild, propriedade que deve o nome a um banqueiro de Londres, barão Nathaniel Rothschild, que a comprou, em 1853. Hoje, continua a ser um negócio 100% familiar e vai já na sexta geração. Passámos por lá duas semanas depois de terem terminado as vindimas. A labuta envolve, ano após ano, 400 a 500 pessoas. “Tudo é feito à mão”, garante a guia, minutos antes de conduzir o grupo até à área de produção, onde, em 64 tanques de madeira e 20 de inox, estavam já a começar a ser produzidos os néctares que irão chegar ao mercado daqui a três anos. “Depois dos processos de fermentação, assemblagem, envelhecimento e engarrafamento, ainda guardamos as garrafas por mais um ano”, declara.

Bem guardadas estão também as inúmeras peças de arte que compõem o museu da propriedade: são mais de 400, entre tapeçaria, esculturas, artigos de cerâmica, entre outros. Ali, escondem-se vários tesouros, incluindo uma peça do século XVI que foi usada para o rótulo do Vintage 2000 (imagem gravada a ouro). Um gosto especial pela arte que é também exibido nas garrafas da marca: todos os anos, é escolhido um artista diferente para criar o rótulo – numa das salas do museu, é possível apreciar os originais (em 1958, por exemplo, o escolhido foi Salvador Dalí, e, em 1973, foi Pablo Picasso).

Separados pela estrada e pela história

É ainda na zona de Pauillac que visitamos outras duas propriedades carregadas de história, com um início partilhado – apesar de hoje serem concorrentes e estarem separadas por uma estrada. Em 1850, a grande propriedade Pichon acabou por ser repartida entre os filhos homens (Pichon Baron) e as filhas (Pichon Comtesse) da família proprietária. Desde então, têm estado separadas e parecem nutrir entre si uma rivalidade amigável, sem renegarem o passado em comum.

“Claro que o título de condessa é mais importante na hierarquia da nobreza”, repara, em jeito de brincadeira, Charles Fournier, director de marketing do Château Pichon Longueville Comtesse de Lalande, marca que se manteve nas mãos da família original até 1925. Nessa altura, foi comprada por dois comerciantes de vinho e, posteriormente, gerida pela filha de um deles, May-Eliane. Em 2007, foi comprada pelo produtor de champanhe Louis Roederer.

As suas vinhas estendem-se ao longo de 90 hectares, bafejadas por um clima muito propício. “Estamos entre duas massas de água, o mar e o rio”, faz questão de notar Fournier. Do outro lado da estrada, e apesar da longa separação, o relato sobre aquele que tem sido o percurso da vinícola não termina de forma muito diferente.

O Château Pichon Longueville Baron ainda esteve nas mãos da família original até 1933, ano em que foi comprado pela família Bouteiller. Mais recentemente (1987), a vinícola foi adquirida por uma companhia de seguros francesa (a Axa, igualmente detentora da Quinta do Noval), que deu início ao processo de modernização das instalações. Uma das notas que mais salta à vista prende-se com o espelho de água que foi criado em frente ao palacete. Para além de reflectir a imagem do belo imóvel, aquela piscina “esconde” uma adega subterrânea.

Um príncipe nos comandos

É em Pessac que está localizado um dos châteaux mais antigos de Bordéus: o Haut-Brion. A história deste Premier Cru Classé em 1855 já leva cinco séculos e tem vindo a ser escrita por várias famílias, com especial destaque para a dos fundadores, de Pontac, e dos americanos Dillon, proprietários desde 1935. Actualmente, a liderança da propriedade está nas mãos de um verdadeiro príncipe. Robert do Luxemburgo, que é também da família Dillon, assumiu os comandos tanto da Haut-Brion como da outra propriedade da família, o Château La Mission.

Está localizada a escassos metros da Haut-Brion, num edifício que outrora foi um mosteiro. Testemunho da história são os vários motivos religiosos que ainda decoram a adega, bem como a capela que ali existe. A família Dillon comprou a propriedade em 1983, dando início a um processo de renovação das vinhas, adega, bem como do próprio palacete e da capela.

Origem secular tem também o Château Smith Haut Lafitte, outra das vinícolas que fez parte do roteiro preparado pela VSX Club. Nas mãos dos actuais proprietários, a família Cathiard, desde 1990, esta vinícola é também conhecida por ser o berço da conhecida marca de cosmética Caudalie.

São 78 hectares de vinha que rodeiam o imóvel que acolhe a unidade de vinificação e as adegas. Aqui, tal como no Haut-Brion, a produção de barris não é deixada em mãos alheias, existindo um espaço próprio de tanoaria. É dali que saem, todos os anos, cerca de 500 barris, feitos a partir de carvalho francês. “Para o vinho tinto, usamos 60% de barricas novas; para o branco é de 50-50”, informa a nossa guia. De visita às adegas do Smith Haut Lafitte, é possível ficar, ainda, a conhecer outras curiosidades, como a duração do processo de envelhecimento (entre 16 a 22 meses) ou o facto de a cave reservada ao tinto ser das maiores de toda a região de Bordéus.

De volta ao exterior, outra preciosidade: por entre o vinhedo, vão sobressaindo diversas obras de arte. Esculturas, em ferro, madeira ou pedra, que decoram o espaço exterior da propriedade, algumas delas assinadas por artistas bem conhecidos, como é o caso de Mimmo Paladino ou Jim Dine.

Tradição e modernidade de mãos dadas

É mais uma vinícola Premier Cru Classé em 1855, mas é também uma das propriedades mais bonitas. O Château Margaux, cujas origens remontam ao século XVII, conta com um bonito “castelo”, rodeado pelas adegas e por uma área de habitações para os funcionários que ali trabalham a tempo inteiro.

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Château Margaux Johana Loubet

E igualmente digno de registo é o facto de a marca conseguir conjugar, na perfeição, tradição e modernidade. Ainda que mantenha a sua adega original, de 1855, o Château Margaux conta uma infra-estrutura subterrânea e bem mais recente, onde o vinho é envelhecido a partir de Maio – entre Novembro e Abril fica na adega mais antiga. Para o seu primeiro vinho, Château Margaux (premier grand cru), a marca usa “100% barris novos”. No segundo, Margaux, e no terceiro, Pavillon Rouge, essas percentagens descem para os 65 e 25%, respectivamente. Parte dos barris são produzidos na unidade de tanoaria que ali existe, mas a grande maioria, entre 700 a 800, têm de ser comprados fora – dentro do Château Margaux só são produzidos cerca de 250 por ano. A verdadeira jóia da casa está, como não podia deixar de ser, bem escondida: uma “biblioteca de vinhos”, construída em 2015, onde estão guardadas cerca de 150 mil garrafas de vários anos. A mais antiga é de 1848.

Um pequeno Taj Mahal às portas do château

Se as vinícolas da região de Bordéus fossem sujeitas a um concurso de exuberância, a Cos d’Estournel seria uma forte candidata ao primeiro lugar. Com uma arquitectura exterior que aposta em vários motivos indianos, o palacete desta vinícola destaca-se dos demais à sua volta.

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Propriedade Cos D'Estournel dr

Fundado em 1791 por Louis Gaspard d’Estournel, o château começou por apresentar linhas mais clássicas e tradicionais mas atendendo à ligação que o fundador acabou por estabelecer com a Índia – que foi um dos seus maiores mercados -, os motivos indianos não tardaram a decorar as paredes. E não só. O próprio jardim da propriedade acaba por ser uma reprodução, ainda que em dimensões bem mais pequenas, do Taj Mahal. Também no interior a decoração foi beber toda a sua inspiração à cultura indiana e não faltam por ali peças em madeira originárias daquele país.

A propriedade, que conta com 100 hectares de vinha e produz um total de 450 mil garrafas por ano, guarda, igualmente, no seu interior uma adega de design ultramoderno e onde mora uma espécie de “santuário”: um pequeno museu, que reúne o património do château e a colecção pessoal de vinhos do proprietário (a garrafa mais antiga é de 1865).

Parte da colheita de 2017 envelhecida em ânforas

Por esta altura, a sensação era inevitável. Depois de tantas visitadas, marcadas por tão diferentes especificidades, já pouco mais haveria para descobrir. Puro engano. Em cada vinícola, uma caixinha de surpresas e no caso do Château Beau-Séjour Becot, localizado em Saint-Emilion, a grande surpresa estava debaixo de terra. É uma cave subterrânea que está integrada numa rede de túneis de cerca de 200 quilómetros de extensão. “Como era preciso pedra para construir as casas, durante séculos andaram a cavar a terra para a tirar debaixo do solo”, relata Emilie, a nossa guia. Percorrer a própria rede de túneis da Beau-Séjour Becot revela-se uma aventura sem igual, indo ao encontro das várias colheitas da casa (são 90.000 garrafas que por ali estão armazenadas) e da adega particular da família Becot.

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Chateau Beau-Séjour Bécot dr

Outro dado curioso desta vinícola prende-se com a colheita de 2017, que está a ser alvo de uma experiência inédita ao nível do processo de envelhecimento: uma pequena parte do vinho está a envelhecer em ânforas de terracota italiana – o grosso da produção está em barricas de madeira 70% novas. Resta, agora, aguardar para ver o resultado da experiência com as ânforas.

A perpetuação de LN e a torre da hospitalidade

Novo destino, novo château. O La Conseillante, localizado em Pomerol, estará para sempre ligado ao nome de uma mulher - Catherine Conseillan, sua proprietária no século XVIII, é que lhe deu o nome. Desde 1871, mantém-se nas mãos da mesma família (Nicolas) - as letras LN que sobressaem dos rótulos dos vinhos La Conseillante evocam, precisamente, o homem que então adquiriu a propriedade, Louis Nicolas.

São 12 hectares de vinha, exclusivamente de tinto (80% Merlot e 20% Cabernet Franc), onde tem vindo a ser feita uma aposta forte “para produzir um vinho orgânico”, realça Luc, o chefe da cultura, que acabou por ser também o nosso guia. A tradição e o respeito pela herança histórica são, por aqui, levados muito a sério, sem que isso tenha invalidado a marca de investir na modernização das suas instalações e equipamentos. Exemplo disso é a nova sala das cubas (foi estreada na colheita de 2012), onde os 22 tanques, de betão – material menos sujeito “à diferença de temperaturas”, explicam-nos -, estão dispostos de forma oval.

Para encerrar o périplo, nova incursão por Saint-Julien, desta vez para visitar e jantar no Château Gruaud Larose, cuja história tem vindo a ser escrita ao longo de séculos e com vários protagonistas. Começando desde logo por dois homens em particular: o padre Joseph Stanislas Gruaud, que fundou a propriedade, e Jean Sébastien Larose, que a recebeu, por herança, em 1771. Está nas mãos da mesma família (Merlaut) desde 1996.

Testemunho da longa história desta propriedade é a torre mandada construir em 1740, pelo seu primeiro proprietário, e onde, segundo reza a história, era içada a bandeira da nação a quem Gruaud vendia a colheita do ano - hoje, num gesto de hospitalidade, são içadas as bandeiras dos países de origem dos grupos que visitam a propriedade – no nosso caso, ganhou a do Brasil pois o grupo era constituído maioritariamente por brasileiros.

A Fugas viajou a convite da VSX

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