Arábia Saudita acusa Senado americano de "interferência em assuntos internos"

Senadores aprovaram uma proposta para cortar o apoio à Arábia Saudita na guerra no Iémen e responsabilizaram o príncipe Mohammed bin Salman pelo assassínio do jornalista Jamal Khashoggi.

Foto
Guerra no Iémen e assassínio de Jamal Khashoggi no centro da tensão LUSA/ERDEM SAHIN

A Arábia Saudita acusou o Senado dos EUA de interferir nos seus assuntos internos ao aprovar uma proposta para o fim do apoio norte-americano à guerra no Iémen, na passada quinta-feira. No mesmo dia, os senadores acusaram o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, de ser o responsável pelo assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, uma acusação feita "com base em alegações falsas", segundo Riade.

"O reino [da Arábia Saudita] declarou anteriormente que o assassínio do cidadão saudita Jamal Khashoogi é um crime deplorável que não reflecte a política do reino e as suas instituições, e reafirma a rejeição de quaisquer tentativas para tirar o caso do caminho da justiça", lê-se num comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita, transmitido pela agência de notícias oficial do país.

A votação da semana passada no Senado norte-americano não tem consequências práticas para a Arábia Saudita, mas representa uma crítica – tanto no Partido Democrata como no Partido Republicano – à forma como o Presidente Donald Trump tem gerido as relações com o reino após o assassínio de Jamal Khashoogi no consulado saudita em Istambul, no dia 2 de Outubro.

A proposta foi aprovada com 56 votos a favor e 41 contra, um resultado que só foi possível porque sete senadores do Partido Republicano votaram a favor, enfrentando a posição do Presidente Trump.

A Casa Branca tentou convencer os senadores a não votarem esta proposta porque a sua aprovação pode criar mais problemas às relações entre os EUA e a Arábia Saudita.

O Presidente Trump disse, em várias ocasiões, que o assassínio de Khashoogi não deve pôr em risco os negócios de milhares de milhões de dólares entre os dois países para a venda de armas. Mas os críticos desta posição dizem que a Arábia Saudita deve ser fortemente penalizada pelo assassínio do jornalista – através de sanções, da responsabilização clara do príncipe Mohammed bin Salman e do fim do apoio à guerra no Iémen, onde os EUA prestam ajuda às forças sauditas.

Sem efeitos práticos

Na semana passada, pela primeira vez, uma câmara do Congresso norte-americano votou a favor da retirada das forças militares de um cenário de guerra no estrangeiro (neste caso no Iémen), ao abrigo da Lei dos Poderes de Guerra (War Powers Act), aprovada em 1973.

Segundo essa lei, o Presidente dos EUA tem de informar o Congresso até 48 horas depois de pôr em marcha uma intervenção militar, e essa intervenção só pode manter-se no tempo com uma autorização do Senado e da Câmara dos Representantes (as duas câmaras do Congresso norte-americano).

Na prática, os senadores disseram ao Presidente que essa ajuda militar deve ser terminada porque não teve a autorização do Congresso – uma afirmação que vale mais pelo simbolismo do que por qualquer possibilidade de vir a ser cumprida pela Casa Branca.

Para que tenha algum efeito prático, a Câmara dos Representantes (a câmara baixa do Congresso) também teria de aprovar uma resolução semelhante à que foi aprovada pelo Senado (a câmara alta do Congresso) – o que não vai acontecer, pelo menos até ao fim do ano, enquanto o Partido Republicano estiver em maioria.

Mesmo com o regresso do Partido Democrata à maioria na Câmara dos Representantes, a partir de Janeiro, será difícil que isso aconteça – o Presidente usará o seu poder de veto, e depois tanto o Senado como a Câmara dos Representantes teriam de reunir dois terços dos votos para anular esse veto. Uma tarefa praticamente impossível quando se olha para o equilíbrio de forças, tanto actualmente como a partir de Janeiro: 53-47 para o Partido Republicano no Senado; 235-200 (ou 236-199) para o Partido Democrata na Câmara dos Representantes.

Uma lei polémica

Desde que foi aprovada, em 1973, a Lei dos Poderes de Guerra tem sido alvo de muita discussão no Congresso, na Casa Branca e nos tribunais.

O caso da ajuda militar norte-americana ao Iémen não é o primeiro em que os partidos acusam um Presidente de violar a Lei dos Poderes de Guerra. Entre os casos mais destacados estão o bombardeamento no Kosovo em 1999, ordenado pelo Presidente Bill Clinton, e a intervenção militar na Líbia, em 2011, ordenada pelo Presidente Barack Obama.

Mas tem sido impossível, ao longo das décadas, determinar o que é uma intervenção militar à luz do texto da Lei dos Poderes de Guerra, e se o Congresso tem de facto legitimidade para limitar os poderes de guerra do Presidente, ao abrigo da separação de poderes.

"Na verdade, a Lei dos Poderes de Guerra não funciona", disse o antigo congressista Lee Hamilton, do Partido Democrata, num texto publicado em 2011 pela NPR. Na prática, a lei só é usada "como uma ferramenta política do Congresso".

"A retórica é tristemente familiar. Limita-se a mudar de partido, dependendo de quem é o responsável pelo envio das tropas", disse Gordon Adams, da American University.

E, mesmo quando alguns congressistas tentam levar a questão ao Supremo Tribunal, como aconteceu em 2000, a resposta é quase sempre a mesma: "Em 95% dos casos, o tribunal diz que há 30 congressistas a acusarem o Presidente de violar a lei e outros 30 a dizerem que isso não é verdade. Nós não vamos meter-nos nisso", resumiu Louis Fisher, um constitucionalista que passou 40 anos como conselheiro do Congresso.

Sugerir correcção
Ler 9 comentários