Jonathan Uliel Saldanha quer dançar com o outro sem filtros

Porto, Lisboa, Açores, França, Uganda. Performances, concertos, exposições, novos discos. Jonathan teve um 2018 hiperactivo. Não é novo nisto, mas nunca recebeu tanta atenção como agora. Para 2019, novidades não faltam.

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Quando Jonathan Uliel Saldanha estreou a peça SØMA, em Novembro, alguém lhe disse que tinha aterrado um ovni na Culturgest Lisboa. Nada que o tenha surpreendido. “As pessoas nunca souberam muito bem o que fazer comigo, mas isso agrada-me. Acho que o trabalho tem de viver pelo seu discurso.” Entre a música e a exploração do som e da voz enquanto matéria, entre a performance e a instalação, entre o vídeo e o gesto, o trabalho de Jonathan Uliel Saldanha é de difícil classificação, cheio de interstícios, vibrações, quebras de linguagem – e também por isso altamente entusiasmante, singular e revelador de mecanismos que parecem viver e sobreviver além de nós, mas que ao mesmo tempo dizem muito sobre o tempo presente.

Foi assim com o vórtice telúrico e animista de Sancta Viscera Tua, em 2014, na Igreja de Santa Clara, Porto, tomada por um coro de cem pessoas, dez performers e um ensemble de músicos. Foi assim com o teatro em queda livre de O Poço, em 2017, no Rivoli, em que havia um buraco negro em vez do palco e uma paisagem em permanente movimento e ressonância. Antes, nos anos zero, houve todo um trabalho subterrâneo feito com o colectivo Soopa, que deixou uma marca indelével no tecido musical e criativo do Porto. Resumindo: Jonathan Uliel Saldanha, 39 anos, não é novo nisto. Talvez continue a não encaixar, talvez as pessoas continuem a não saber muito bem o que fazer com ele, mas a verdade é que nunca recebeu tanta atenção como agora. “Sinto, de facto, que há mais interesse naquilo que faço.” Fora do Porto, fora de Portugal (a partir do próximo ano integra a plataforma internacional SHAPE, gerida por uma união de festivais europeus de música e artes audiovisuais, como o Unsound), mas também, e muito, dentro da cidade onde se fez criador – um Porto que, para ele, pouco tem a ver com aquilo que era. “Vi o Porto em três momentos: quando cresci nos arrabaldes do Bairro do Cerco, contexto mega cruel e sem futuro; durante os anos da Soopa, a organizar coisas a partir de um vazio contextual; e agora uma cidade cheia de possibilidades e quase irreconhecível.”

Este ano, além de ter estreado SØMA na Culturgest – em Janeiro será apresentada no Rivoli, no 87.º aniversário do teatro –, editou Beheaded Totem, o excelente segundo álbum da sua banda de há dez anos, os HHY & The Macumbas. Integrou a comitiva de artistas portugueses que Tiago Guedes, director do Teatro Municipal do Porto, levou ao festival DañsFabrik, em Brest, França. Compôs um concerto de raiz com a artista americana Moor Mother no festival Curtas Vila do Conde, e esteve em residência artística no Uganda. Uns dias antes da conversa com o Ípsilon, estava a ver vídeos de baleias na RTP Açores – tudo por causa da sua participação em Geometria Sónica, projecto expositivo, de investigação e produção, que está a ocupar o Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, em São Miguel, até Março de 2019.

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JONATHAN ULIEL SALDANHA estreará uma peça de percussão e luz no FITEI, colaborará com Vera Mantero numa performance e, em Abril, na bienal BoCA, apresenta uma peça coral que vem na sequência de um convite de Nuno Crespo, director da Escola das Artes da Universidade Católica do Porto, onde também vai ter uma exposição Carlos Melo Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas

“Há uma série de coisas que estão a acontecer todas ao mesmo tempo”, diz-nos, enquanto abre o jogo sobre o próximo ano. Tem agendada a estreia de uma peça de percussão e luz no Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI), vai colaborar com a coreógrafa Vera Mantero na criação de uma performance e, em Abril, na bienal BoCA, apresenta uma peça coral que vem na sequência de um convite de Nuno Crespo, director da Escola das Artes da Universidade Católica do Porto (e crítico de arte do PÚBLICO), onde também vai ter uma exposição. Esta não será nem a primeira nem a segunda peça coral de Jonathan, mas será diferente. Quer “expandir” a sua exploração da pré-linguagem e dos “vários níveis da disfunção da linguagem" para “outros sítios”. “O grupo vai interpretar uma peça cujos dados estão na superfície de uma escultura. À medida que eu vou tocando e manipulando esse objecto, eles vão descodificando uma série de possibilidades de interpretação sonora”, explica.

Intensidade e honestidade

Em SØMA, “um trabalho sobre linguagem e perda de pontos conectores”, Jonathan colaborou com quatro adolescentes surdos que, em cena, traduziam um filme em gestos. Para esta nova criação, junta-se a um grupo coral de cegos, “outra brecha de linguagem”. Não há aqui qualquer tipo de exotismo, nem Jonathan considera que o trabalho seja diferente por isso. “Nunca trabalhei propriamente em contextos de teatro ou com música que venha de um paradigma académico. O que me interessa, ao trabalhar com pessoas, são as ideias envolvidas e a força que as pessoas têm em produzir algo com intensidade e com uma honestidade que as implique. E isso é completamente transversal.”

Mais do que bons intérpretes, ou com currículo reconhecido, interessam-lhe “pessoas com espessuras”. Pode dizer-se que esse é um dos elementos aglutinadores da produção artística multiforme de Jonathan Uliel Saldanha – apesar de sabermos que estamos a entrar numa conversa um bocado complicada para ele. Se, por um lado, acredita que não se guia por “temáticas agregadoras”, por outro sabe que há “indícios” que acabam por conectar e contaminar as suas diferentes criações. “É difícil. Acho que é algo que vou ter de responder ao longo da minha vida. Mas sim, os meus trabalhos tocam em elementos como a opacidade, a linguagem, estes grandes buracos negros de nexo, a representação do outro, o invisível, o indizível”, observa. “Tudo isso me interessa, mas também a dimensão mais animista da matéria, a vibração enquanto operador físico e uma espécie de obsessão com a paisagem.”

Nesse sentido, fazer O Poço (eleito pelo Ípsilon como um dos melhores espectáculos de dança de 2017) foi um passo significativo para arrumar uma série de coisas na cabeça de Jonathan. “Sinto que voltei a olhar para questões altamente plásticas, para a dimensão da superfície da pele. Tive vontade de ver a superfície, de ver motas a acelerar, sentir o cheiro da gasolina e do plástico, ver as cores a rebentar nos olhos”, diz. Esse processo ajudou a conferir às criações seguintes uma “dimensão mais objectiva”. “O Oxidation Machine, que fiz no Palais de Tokyo [Paris] no ano passado, já estava pintado dessa energia de O Poço, com sons que atravessam o espaço, sons que têm uma gravidade, um peso, que sentes claramente no corpo, como quando vais a um club e o sistema de som é bom.”

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Carlos Melo Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas

Dub na rua às quatro da manhã

Esta ligação mais visceral ao som, esta procura de uma vibração que habite o corpo, é também aquilo que lhe interessa na música. Por isso chama os HHY & The Macumbas de “laboratório de ritmo”. “Vinha de um contexto em que tocava tabla [instrumento de percussão indiano], mas ao mesmo tempo sempre me interessou a música de dança, o dub, vários tipos de percussão. Macumbas é essa operação prática do ritmo.” A residência artística em Kampala, no Uganda, no âmbito do festival de música Nyege Nyege, onde os HHY & The Macumbas tocaram, foi para Jonathan uma “oportunidade brutal” para aprofundar a sua investigação das culturas e dos patrimónios rítmicos. Além de ter ajudado a construir um estúdio de gravação mal aterrou em Kampala, esteve durante várias semanas a trabalhar com o mestre-percussionista Omutaba. “Começámos por desenvolver uma linguagem rítmica que partia de algumas ideias que eu trazia de Portugal, e depois o que ele fez foi filtrar isso através da sua biblioteca interminável de ritmos. Ritmos de várias zonas do Uganda. E assim fomos construindo uma linguagem sincrética.” Por lá, Jonathan colaborou também com outros músicos. Entre eles, uma trompetista que dirige uma orquestra de órfãos do gueto de Ggaba; a Uganda Prison Brass Band, dos guardas-prisionais de Kampala; e uma série de MCs, alguns deles refugiados do Congo e do Quénia – neste caso, os resultados vão sair em 2019 pela muito recomendável editora Hakuna Kulala.

Foi uma estadia “super intensa”. Afinal, não é todos os dias que se encontra no meio da rua, às quatro da manhã, “um camião com um soundsystem montado, a tocar dub”. “Estás sempre rodeado de som, mesmo à séria. Senti que a música de clube que estava ali a ser feita tem tudo a ver com o que me interessa. Não é nada simpática, nem indiferente. É visceral, dura, para a frente.” De certa forma, essa experiência acelerou a co-criação do colectivo e editora Trrror, dedicado ao dancehall, reggaeton, funk brasileiro e música feita nas periferias, e que se estreou no início de Dezembro com um live-set no (renovado) Pérola Negra, no Porto. “Ainda parece que são músicas que não são levadas muito a sério”, comenta Jonathan. Ele não quer cinismo, nem ironia. Tudo menos isso. “Já chega. Eu quero dançar com pessoas que não conheço, quero dialogar com o outro, e aí África foi tábula rasa”, diz. “O problema é quando se tem muitos filtros. Aquela sensação de que se sabe muito, de que tudo é indexável. Isso retira a presença.”

E é essa presença que mais lhe importa agora. “Estou num momento em que estou receptivo ao tempo real.” Sempre teve um panteão de influências, do filme Stalker, de Andrei Tarkovsky, aos livros de J.G. Ballard, mas hoje pouco pensa nelas. “Agora as referências passam por coisas menos referenciáveis. Interessa-me tanto, plasticamente, uma feira popular como uma galeria.”

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