Da celebração de Debussy ao pináculo de Perahia

Em 2018 assinalaram-se dois centenários, o da morte de Debussy e o do nascimento de Leonard Bernstein, provocando uma avalanche de edições. Nunca se tinha visto nada assim.

Vivemos uma cultura fascinada por números redondos, por exemplo cinquentenário ou, ainda mais, centenário. A música “clássica”, ou seja a música erudita da tradição ocidental não é excepção.

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O ano Debussy foi marcado por duas edições, Debussy Integral Works e Debussy Complete Works The Print Collector/Getty Images

Em 2018 assinalaram-se dois centenários, o da morte de Debussy e o do nascimento de Leonard Bernstein, provocando uma avalanche de edições, sobretudo no primeiro caso. Pode mesmo dizer-se que nunca se tinha visto nada assim. Além de muitíssimas gravações novas, sobretudo de piano, o ano Debussy foi marcado por duas edições, Debussy Integral Works na Warner e Debussy Complete Works na DG. Só que o primeiro tem 33 CD, o segundo 22 mais 2 DVD. Mas como é possível tal discrepância?

A caixa da Warner é um precioso trabalho musicológico, que inclui além do “catálogo canónico" da obra de Debussy, obras de juventude ou inacabadas, arranjos que fez de obras de outros e versões que outros fizeram de obras suas. Quanto à edição da DG restringe-se a esse “catálogo canónico”, apenas com o bónus de no Pelléas et Mélisande além da belíssima gravação de Abaddo incluir também o DVD da produção de Peter Stein e Pierre Boulez na Welsh National Opera.

Mas, por falar em Abbado: como é possível que a DG tenha preterido a favor de outras as suas admiráveis interpretações dos Noturnos (a primeira gravação que fez da obra, em Boston), do Prelúdio À Sesta de um Fauno, em Berlim, e de La Mer com a “sua” orquestra do Festival de Lucerna? Mas como?!

Por outro lado a Warner lançou também uma outra caixa, com obras e interpretações constantes da Debussy Integral Works, a que chamou Centenary Discoveries. Mas nem todas as obras são “descobertas” do centenário. Por exemplo, a inacabada ópera de juventude Rodrigue et Chiméne, completada por Edison Denisov, foi apresentada quando da reabertura da Ópera de Lyon em 1993 (eu sei, assisti), e têm sido várias as propostas de acabamento minimal, e mesmo de produção (até em Lisboa), de A Queda da Casa Usher, segundo Edgar Allan Poe.

Por muitos discos que já tenhamos de Debussy a edição Warner dos Integral Works é algo de histórico, que não se dispensa.

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Para além das reedições do centenário Bernstein, as novas edições centraram-se no seu outro lado, o menos conhecido e considerado, o de compositor “sério” Ron Scherl/ Redferns

Quanto ao centenário do nascimento de Lenny Bernstein, a CBS, agora Sony, companhia a que esteve ligado tantos anos, reeditou em várias caixas todas as gravações que ele fez para essa marca: o resultado é uma pilha de mais de 160 CD, que dificilmente poderá ser plenamente fruído. Quanto à DG, a que esteve ligado nos seus últimos anos, podia esperar-se uma espécie Bernstein Edition bis, já que uma houvera em 2004. Afinal dessa leva foi sim reeditado o volume ao qual menor atenção se prestara, o das Sinfonias de Beethoven (em detrimento de um outro que nesta circunstância faria todo o sentido, The Americans, dedicado aos autores seus compatriotas), uma Carmen com Marilyn Horne, que não sendo propriamente Victoria de Los Angeles e Thomas Beecham ou Tereza  Berganza e Claudio Abbado, não deixa de ter inegável panache.

Reeditada foi também a ópera Candide, o que nos conduz à surpresa deste ano do centenário: houve uma antologia Bernstein on Broadway, mas as novas edições centraram-se no seu outro lado, o menos conhecido e considerado, o de compositor “sério”, com a Mass, a ópera A Quiet Place e a Sinfonia nº2, The Age of Anxiety, dirigidas respectivamente por Yannick Nézet-Séguin, Kent Nagano e Simon Rattle, a última tendo como solista (já que a obra é híbrida) Krystian Zimerman.

E, sem o pretexto dos números redondos ou qualquer outro, a DG lançou uma Gustav Mahler Complete Edition, com 18 discos, sendo que foi na parceira Decca que colheu duas das mais gloriosas interpretações mahlerianas, a Segunda Sinfonia dirigida por Zubin Mehta e a Oitava por Solti, bem como a Terceira por Haitink, aquela que tem como solista essa mahleriana de excepção que foi Maureen Forrester. A questão é: o melómano mahleriano já tem por certo muitos desses registos e é pouco crível que os outros se abalancem a Mahler logo com esta integralíssima que até inclui o andamento de um Quarteto para Piano. Então qual a razão, mesmo do ponto de vista comercial?

E há que falar de um caso insólito e da maior importância: em 2018 surgiu em disco uma partitura inédita de Stravinsky datada de 1908, o Canto Fúnebre, dedicado à memória do seu mestre Rimski-Korsakov. Durante um século, desde a Revolução Russa, que se pensara estar perdida a partitura – essa era aliás a convicção do próprio Stravinsky. Mas depois do colapso da União Soviética musicólogos russos reiniciaram as pesquisas e eis que…em 2015, durante a transferência da biblioteca musical do Teatro Mariinski, em face dele, se descobriu uma parte e em breve todas as outras. Mesmo sem a partitura autográfica completa foi possível reconstituir a obra. Obviamente que Valery Gergiev e a Orquestra do Mariinski foram os primeiros a executá-la e, apesar de outros se terem seguido, aguardava-se que a estreia discográfica fosse de Gergiev. Só que Riccardo Chailly, com a Orquestra do Festival de Lucerna, se adiantou, colocando a obra em conjunto com outras iniciais de Stravinsky, mas mais A Sagração da Primavera, o que nem faz muito sentido (O Pássaro de Fogo teria sido uma opção mais coerente) para mais numa interpretação não muito convincente. Aguardemos pois pelo registo de Gergiev, programado para o ano que entra, mas entretanto já podemos ir desfrutando deste quase inédito e magnífico Canto Fúnebre.

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Em 2018 houve um registo de tal modo portentoso, que não há como escapar: “o melhor disco do ano” é a esmagadora abordagem por Murray Perahia das Sonatas Hammerklavier e Ao Luar de Beethoven Hiroyuki Ito/ Getty Images

Discos e editoras

E abordadas todas estas questões que marcaram o ano, passemos então aos discos isolados.
Mil anos de música, tantos estilos, eras e categorias, aconselhariam, como em anos anteriores, a escolha de destaque precisamente por categorias. Só que em 2018 houve um registo de tal modo portentoso, que não há como escapar a considera-lo “O melhor disco do ano”, a hiper-prodigiosa e verdadeiramente esmagadora abordagem por Murray Perahia das Sonatas Hammerklavier e Ao Luar de Beethoven. Perahia esperou por atingir 70 anos para as gravar e essa longa maturação está bem presente num domínio dos meios técnicos e do discurso musical verdadeiramente magistral, genial.

Posto isto consideremos ainda assim algumas categorias.

Sabe-se como o recital vocal barroco floresceu depois do prodigioso sucesso do Vivaldi Album de Cecilia Bartoli, em 1999. Quase 20 anos passados, e mesmo que, necessariamente, sem o mesmo impacto histórico, houve um novo e magnífico recital Vivaldi da Bartoli.

Mas, entretanto, e não sem deixar de haver influência do impacto bartoliano, os contra-tenores floresceram, concebendo eles próprios, e com fundamentação musicológica, os seus recitais. O mais activo, Max Emanuel Cencic, dedicou um recital estonteante a Il maestro di canto dos dois mais famosos castrati, Farinelli e Caffarelli; Nicola Porpora, de quem aliás também gravou brilhantemente uma ópera, Germanico in Germania, e Franco Fagioli publicou um portentoso recital Haendel.

Para além de muita música sinfónica, a da Edição Mahler e do que mais se falará no capítulo das editoras, é importante abordar outras duas categorias, concerto e música de câmara.

Está farto, como eu, do Concerto nº2 de Rachmaninov, que na mais parte dos casos parece um xarope kitsch? Pois é grande a surpresa mas Danill Trifonov, com Yannick Nézet-Seguin e a Orquestra de Filadélfia, retira aos Concertos nº 2 & nº4 os excessos do pathos romântico delicodoce, e o controle do rubato permite apercebemo-nos de que há de facto um cuidadoso detalhe da escrita pianística.
E há Martha Argerich claro. Em Prokofiev For Two ela encontra novo parceiro de eleição, Sergei Babayan, depois do seu ex-marido com quem está de novo a tocar, Stephen Bishop-Kovacevich, Mikhail Pletnev e Nelson Freire. É um admirável diálogo em que a grande maioria das peças são transcrições de Babayan de obras como o Romeu e Julieta.

E no tocante a editoras? Duas se destacaram, ambas ligadas a emissoras radiofónicas (e ambas distribuídas em Portugal pela CNM), só que uma de actualidade, outra de arquivos.

A BR Klassik é a editora da Rádio da Baviera e a Orquestra dessa raádio representa hoje o suprassumo no reportório pós-romântico. São dois os seus maestros de eleição, o decano Bernard Haitink, com a Sinfonia nº3 de Mahler (a sua sétima gravação desta obra!!!) e a Sinfonia nº6 de Bruckner, e Mariss Jansons, com as Sinfonias nº5 & 7 de Mahler e a Sinfonia Alpina de Strauss.

Tendo ainda em conta as gravações brucknerianas de Andris Nelson, que se encaminham rapidamente para uma integral, e até, bastante surpreendente neste reportório, um Riccardo Muti, com a Terceira de Bruckner e Le Bourgeois Gentilhomme de Strauss, mas sobretudo uma sublime Sexta Sinfonia de Mahler dirigida por Kirill Kondrashin, em gravação já de 1981 mas só agora publicada, com a Orquestra da Rádio “do lado", isto é, a Südwestfunk de Baden-Baden, melhor teremos noção desta proeminência do pós-romantismo e também em que a marca de labor mais activo é BR Klassik.

E houve a divina surpresa do início da actividade regular da ICA, International Classical Arts, publicando os arquivos dos concertos gravados pela BBC nos anos 50.

O primeiro disco publicado foi assim a modos de uma bomba: um concerto de 1955, com Karajan a ter o seu único encontro com Clara Haskil, num Concerto nº23 de Mozart simplesmente mágico, e dirigindo ainda do mesmo Mozart as Sinfonias nº29 & nª 41 e uma incrivelmente dramática Sinfonia nº4 de Tchaikovski – nem na base de dados do Instituto Karajan constava a existência dessa gravação.

E, entretanto, eis que chegaram também umas Bodas de Fígaro superlativas, com Böhm a dirigir a companhia da Ópera de Viena, com destaque para um trio feminino que é dos mais salientes em toda a discografia da obra: Lisa della Casa, Irmgard Seefried e Sena Jurinac, pasme-se!
Enfim, ou quase, um DVD duplo, e absolutamente incrível: um Billy Budd, terceira encenação por Deborah Warner (que aliás é a grande criadora do teatro europeu que falta conhecer em Portugal) de uma ópera de Britten, após Morte em Veneza e The Rape of Lucretia, de um incrível despojamento cenográfico mais se concentrando na construção das personagens, com um Billy crístico – é um dos mais belos DVD de ópera que já vi.

E houve intérpretes e obras de autores portugueses.

O destaque de notoriedade foi obviamente À Portuguesa, em que é solista e dirige a Orquestra Barroca da Casa da Música o grande Andreas Staier, e que nomeadamente inclui não apenas aquele que designamos por “o concerto de Carlos Seixas”, em lá maior, mas também um outro de atribuição recente a Seixas, em sol menor.

Mas houve também dois grandes discos, dos melhores do ano respectivamente em música de câmara e contemporânea, a integral da obra para piano e cordas de Chostakovich pelo Ensemble DSCH (isto é as iniciais do compositor russo, que variadas vezes as utilizou também como motivo musical), e O Sotaque Azul das Águas de Luís Tinoco, brilhante confirmação em quatro obras de uma mestria dos meios orquestrais, designadamente na variedade tímbrica.

O infatigável Nuno Vieira de Almeida continua a organizar programas de canções de autores portugueses, desta vez Fernando Lopes-Graça, e numa editora internacional, a Naxos, sendo particularmente de salientar as canções de Natal.

Depois de há dois anos ter publicado O Estado da Nação, duplo CD com obras daqueles que ao longo dos anos foram jovens compositores em residência (e mea culpa por não ter escrito sobre tão importante disco), a Casa da Música publicou agora O Estado da Nação II, menos original por ser com obras de autores já veteranos ou reconhecidos. Inconcebível, contudo, é que não faça qualquer esforço para publicar no mercado as suas edições, que apenas podem ser adquiridas por via directa ou electrónica na sua própria loja.

Numa pequena editora austríaca, a Paladino, Hugo Queirós publicou algo que pelo menos para mim é inédito, um disco, Time and Motion, só com obras para clarinete baixo, não isento de algum risco de monotonia mas que explode na última obra, Décombres de Raphaël Conte, com similaridades com o free jazz.

Enfim, no momento em que escrevo aguarda-se ainda a chegada às lojas de O Doido e a Morte, interessantíssima ópera de câmara de Alexandre Delgado, baseada em Raul Brandão – até já houve sessão de lançamento mas aí verificou-se haver um problema técnico.

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