Ministério de Pinho tentou reter avaliações das barragens da EDP

Em 2007, o antigo Instituto da Água teve de insistir durante mês e meio para que o Ministério liderado por Manuel Pinho aceitasse entregar-lhe as avaliações que fixaram o valor que a EDP pagou pelas concessões das barragens.

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O ex-ministro da Economia, Manuel Pinho, deverá ser ouvido na Assembleia da República na próxima semana Miguel Manso

Depois de ter criticado as alterações introduzidas, em 2006, pelo Ministério de Manuel Pinho ao diploma que regulamentava a Lei da Água, de modo a que a EDP pudesse prolongar a exploração de 26 barragens sem concurso público, o antigo Instituto da Água (Inag), que era a entidade que geria os recursos hídricos e desenhou o projecto de decreto-lei, foi posto à margem do processo. Em 2007, já com o diploma alterado e aprovado, o instituto foi confrontado com a obrigação de preparar os contratos de concessão entre o Estado, a REN (que tinha os terrenos e os centros) e a EDP (que tinha as barragens e o uso da água).

Isso mesmo disse o ex-presidente do instituto, Orlando Borges, na comissão parlamentar de inquérito (CPI) às rendas da energia, em Outubro. Mas disse mais; revelou que para fazer os contratos teve “enorme dificuldade” em aceder às avaliações pedidas por Manuel Pinho ao Caixa BI e ao Crédit Suisse para fixar o valor da contrapartida a pagar pela EDP ao Estado – 759 milhões de euros (que acabaram reduzidos a 704 milhões, porque ao valor foram deduzidos 55 milhões da taxa de recursos hídricos).

A correspondência trocada entre o Inag e o Ministério do Ambiente, liderado à época por Francisco Nunes Correia, e os memorandos das reuniões entre o Inag, a EDP e a REN (ocorridas entre Outubro e Dezembro de 2007), mostram que foi preciso insistir mais de mês e meio, denunciar o “impasse nas negociações”, e envolver no processo o secretário de Estado do Tesouro, Carlos Costa Pina, para que o Ministério da Economia entregasse as polémicas avaliações.

As avaliações “foram já por diversas vezes solicitadas ao gabinete do ministro da Economia, através do presidente do Inag e do gabinete do ministro do Ambiente (…) sem qualquer sucesso”, lê-se num dos memorandos que o PÚBLICO consultou. O Inag frisava então que era impossível redigir 26 contratos de concessão, “que têm 26 equilíbrios económico-financeiros distintos, apenas por referência a um valor de resultado global agregado aos 26 contratos [os 759 milhões] e desconhecendo os respectivos pressupostos”.

Na realidade, sobre este processo, o Inag desconhecia quase tudo. Como demonstra a documentação, o instituto precisava das avaliações e dos contratos de concessão originais para determinar, por exemplo, se deviam ser exigidas rendas à EDP, e para fixar nos novos contratos cláusulas relativas à reversão ou resgate das concessões. A Economia não lhe entregava as primeiras e a EDP dava “sinal de não reconhecer e pretender ignorar a existência” dos segundos, queixava-se o Inag em Novembro, num ponto de situação em que dizia que toda a situação aconselhava o “envolvimento do Ministério das Finanças” para “apreciar as avaliações solicitadas pelo Ministério da Economia” ou para que se realizassem outras “mais completas”. Acabariam por vingar as do Crédit Suisse e do Caixa BI.

O valor das concessões é um dos temas centrais na investigação judicial aos contratos da EDP, porque há uma avaliação da REN que apontava que o valor podia chegar perto dos 1600 milhões de euros e que foi posta de lado pelo Governo, que encomendou novos cálculos. “Esse estudo foi analisado por quem? Por quem é que o estudo que avalia a prorrogação de uma concessão do domínio hídrico foi avaliado? Pelo promotor [a EDP]? Pelo Instituto da Água, não foi”, criticou Orlando Borges, sublinhando a diferença entre este dossiê e o dos concursos do Plano Nacional de Barragens, lançado uns meses mais tarde, em que o Inag liderou todo o processo.

Já Nunes Correia, quando foi à CPI, usou a expressão “cada macaco em seu galho” para explicar que cada ministério tinha as suas competências e que no caso da EDP – mesmo estando em causa o prolongamento das concessões de 26 barragens, em média por mais 25 anos –, o papel do Ambiente era o da entidade que gere “transversalmente, todas as utilizações da água e do domínio hídrico, incluindo as da energia”. Segundo o ex-ministro, “o empenho do Ministério do Ambiente” foi receber a taxa dos recursos hídricos; tudo o resto eram “acertos financeiros dos CMEC”, que tinham a ver com a “actividade económica da produção de energia” que tinha “uma tutela clara”. Manuel Pinho deverá ser ouvido na próxima quinta-feira na CPI. Contactado, o antigo governante não fez comentários sobre estas questões.

Borges garantiu aos deputados que o tema das barragens “começava e acabava no Ministério da Economia”, apesar da concessão do domínio hídrico ser uma “matéria da responsabilidade directa do Ministério do Ambiente”, e que isso ficou evidente quando teve de fazer os contratos e percebeu que o “seu” ministro, mesmo tendo assinado o despacho que fixava o valor a pagar pela EDP, desconhecia as avaliações. Também foi notório que o processo estava a passar ao lado das Finanças, num momento em que se preparava a sétima fase de privatização da eléctrica.

"Visto com muita preocupação"

Foi a 22 de Outubro de 2007, depois da segunda reunião de trabalho com a EDP e a REN, que as queixas do Inag foram postas por escrito e transmitidas pelo gabinete de Nunes Correia às Finanças. “É sabido que a REN e o senhor ministro da Economia encomendaram e estão na posse de duas avaliações (…), as quais determinaram os valores das prorrogações”, lia-se no documento. Já estavam “em cima da mesa negocial propostas de contratos de concessão, uma das quais da REN”, sem que a entidade que representava o Estado no processo soubesse qual era “o ponto de partida, por não serem reveladas as ditas avaliações”, nem ser claro quem as tinha.

“O Ministério do Ambiente não as pode facultar aos seus advogados, por ora a REN dizer que quem as tem é o Ministério da Economia, ora do gabinete deste dizem que é a REN que as tem”, relatava o documento, que terminava com um apelo: “Sendo sua excelência o Ministro de Estado, das Finanças e da Administração Pública, o titular da função accionista do Estado, com atribuições em matéria do domínio público, requer-se a sua intervenção no sentido de a REN [então uma empresa pública] ordenar as suas posições com as do Estado, não se colocando numa posição adversa, e facultando rapidamente cópia das ditas avaliações”. A REN era, à data, presidida por José Penedos.

Foi preciso esperar cerca de um mês para que a 20 de Novembro, numa reunião onde estiveram “os advogados que representam a EDP e a REN, o Dr. Rui Oliveira Neves e o Dr. Miguel Nogueira de Brito, o adjunto do senhor ministro da Economia, o Eng. João Conceição, o director-geral de Energia e Geologia, o Dr. Miguel Barreto”, entre outros, chegasse ao Inag uma cópia das avaliações, “sob reserva de confidencialidade”.

Coincidência ou não, a troca de correspondência consultada pelo PÚBLICO mostra que a resposta de Carlos Costa Pina à informação enviada um mês antes haveria de chegar no dia seguinte, 21 de Novembro, ao gabinete de Nunes Correia. E nela podia ler-se: “Visto com muita preocupação”. Reconhecendo não dispor de qualquer informação sobre o assunto, o secretário de Estado do Tesouro requeria aos ministros da Economia e do Ambiente que indicassem interlocutores para lho apresentarem.

Na CPI, Orlando Borges considerou que “do ponto de vista das salvaguardas do interesse do Estado, nomeadamente das contrapartidas”, todo o processo foi “ligeiro”. Reconheceu “fragilidades” aos estudos, mas diz que quando olhou para eles “já não estava preocupado se a taxa de desconto [aplicada aos fluxos financeiros] era A ou B, porque já havia um despacho em Diário da República que dizia que era aquele o valor e que eram aquelas as entidades e ponto final”. Notou que procurou “salvar alguns anéis” e que algumas “situações que estavam bloqueadas” pela REN e pela EDP foram “ultrapassadas em reuniões intensas com o Ministério das Finanças”. O PÚBLICO questionou o ex-secretário de Estado Costa Pina sobre qual foi a intervenção das Finanças, mas não foi possível obter um comentário.

Segundo Orlando Borges, uma das principais preocupações salvaguardada foi a garantia da “unicidade da concessão”. No processo que lhe chegou às mãos, as duas empresas tinham concessões “desfasadas no tempo” (a REN os terrenos e os centros e a EDP a água). Com isto, o Estado ficaria “impossibilitado de acertar o que fosse” com as empresas e perdia a autonomia para, por exemplo, decidir resgatar ou não prorrogar as concessões.

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