Rãs-marionetas e o regresso à grega inquietude no 2019 do Teatro Nacional São João

Mais de dezena e meia de estreias e co-produções fazem o calendário de espectáculos da instituição para o próximo ano. É a passagem de testemunho – com assinatura – de Nuno Carinhas para o seu sucessor na direcção artística do teatro, que já se prepara para celebrar o centenário em 2020.

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Mnémosyne, exposição-performance de Josef Nadj Blandine Soulage
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Martin Crimp no Teatro São João no Fórum do Futuro Susana Neves
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Sopro, de Tiago Rodrigues Filipe Ferreira

Na agenda do Teatro Nacional São João (TNSJ) para os próximos sete meses, apresentada esta sexta-feira no Porto, sobressaem dois momentos que terão algum simbolismo para a história da instituição: os dias 7 e 27 de Março. O primeiro assinala o 99.º aniversário do edifício projectado por José Marques da Silva que em 1920 veio substituir o primeiro teatro de ópera feito de raiz na cidade, arruinado por um incêndio uma década antes. Será então que a actual equipa do teatro nacional portuense irá antecipar o programa das festas de 2020, um ano que se antevê "redondo, grávido, cheio”. Depois, a 27, Dia Mundial do Teatro, Nuno Carinhas, que nessa altura será já ex-director do TNSJ, estreia a peça que vai encenar em parceria com Fernando Mora Ramos, O resto já devem conhecer do cinema, do dramaturgo britânico Martin Crimp, um “herdeiro da grega inquietação” – que, como aperitivo, o São João trouxe à edição este ano do Fórum do Futuro, onde proferiu uma conferência.

Esta escolha de Carinhas, mesmo se resulta de “um desafio do Fernando Mora Ramos” – com quem, em 2015, encenou também O Fim das Possibilidades, de Jean-Pierre Sarrazac –, vem na sequência da atenção que, como encenador, tem dado ao teatro grego, e será, diz, “uma extensão” da experiência por que passou em 2010 com a montagem da Antígona, de Sófocles.

“É interessante voltar à tragédia grega. Nós temos sempre de deixar passar algum tempo para voltarmos àquilo de que gostamos”, diz Carinhas ao PÚBLICO, explicando que já conhecia a obra de Crimp, mas que essa será a sua primeira experiência em palco com o dramaturgo, num espectáculo que irá contar com actores profissionais, mas também terá jovens ex-alunos da ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo) a fazer o coro.

“Pareceu-me uma bela maneira de me ir afastando aos bocadinhos da casa, mas sobretudo porque os gregos, e a maneira como o Martin Crimp os trata, estão completamente actualizados: são os nossos problemas, e eu gosto de discutir política também em palco”, sublinha o encenador sobre uma peça que tem por base As Fenícias, de Eurípides.

Carinhas termina no final deste mês um período de dez anos à frente da direcção artística do TNSJ – onde irá ser substituído em Janeiro por Nuno Cardoso. A programação para a primeira parte da temporada de 2019, ainda da sua responsabilidade, é particularmente densa e variada: tem 12 estreias e 16 co-produções; acolhe espectáculos de três festivais – a BoCA, o FITEI e o Dias da Dança –, apresenta criações de (autores e actores) jovens e consagrados; e desdobra-se em várias artes do palco (a dança e a música, a performance e a instalação, a literatura e a fotografia). É, naturalmente, um programa ainda com assinatura de Carinhas, mas o director-encenador recusa a ideia de que tenha pretendido deixar algum rasto mais vincado. “É uma programação que tem a ver com uma dinâmica da casa, que está agora mais ou menos confortável, apenas isso”, assegura.

Desafiado pelo PÚBLICO a seleccionar meia dúzia de espectáculos da programação do TNSJ e das suas duas outras salas, o Teatro Carlos Alberto (TeCA) e o Mosteiro de São Bento da Vitória (MSBV), Carinhas põe a tónica nas estreias e nas co-produções com outras estruturas. E começa por sublinhar a chegada a Portugal da criação Mnémosyne, de Josef Nadj (MSBV, 17 a 20 de Janeiro), misto de exposição de fotografia e de performance de um autor que Carinhas considera “um demiurgo, do mesmo modo que Nekrosius o foi”. “Nadj é um artista completíssimo: escritor, bailarino, coreógrafo, encenador, artistas plástico, com uma poética que me diz muito”, acrescenta. Em Mnémosyne, o artista francês de origem jugoslava propõe um díptico em volta de rãs-marionetas com as quais encena várias narrativas entre o heróico e o trágico.

Ainda em Janeiro (TNSJ, 30 a 10 de Fevereiro), Alice no País das Maravilhas marcará o primeiro encontro do São João com Ricardo Neves-Neves, aqui numa encenação partilhada com Maria João Luís, que dá ao clássico de Lewis Carroll “um tom musical e fantasioso, na exploração da consciência de si num registo surrealista”, nota Carinhas.

A seguir virá Breu (TeCA, 14 a 23 de Fevereiro), co-produção com o colectivo Musgo sobre o mundo do circo numa metáfora sobre a precariedade do trabalho dos artistas.

Já em Abril (TeCA, 10 a 13), Pathos, criação de Cátia Pinheiro e José Nunes, é “uma tragédia, um espectáculo-ruína”, que Carinhas associa uma vez mais ao imaginário da Grécia antiga numa viagem que nunca chegou a terminar, e um olhar sobre uma certa ideia de humanidade, nestes tempos de intolerância e fundamentalismos. Os autores, e fundadores do colectivo Estrutura, classificam a sua criação como “um salto de fé”.

Música para Manuel António Pina

Outra estreia de 2019 será Coisas que não há que há (TeCA, 31 de Maio e 1 de Junho), cujo título remete de imediato para o imaginário de Manuel António Pina. Trata-se de uma criação de Catarina Lacerda e Raquel Couto, do Teatro do Frio, que reúne peças de dez compositores convidados a musicar outros tantos poemas do poeta-dramaturgo para um coro de vozes infantis e juvenis. Também terá a sua estreia no Porto Quimeras, de Luís Castro e Vel Z (MSBV, 7 a 9 de Junho), recriando o conceito perfinst (performance-instalação) a partir da escultura Cristo Velato (1753), de Giuseppe Samartino, exposta no Museu da Capela de São Severo, em Nápoles.

Haverá ainda, até ao Verão, O Poeta Acorrentado à Mesa (TeCA, 26 a 30 de Junho), com que João Samões faz um retrato da vida e obra de Céline; Lux-Lucis (TNSJ, 4 a 6 de Julho), com Miquel Bernat e o seu Drumming – Grupo de Percussão a coreografarem um espectáculo musical sobre a luz e o seu lugar na sociedade; Bonecas (TeCA, 11 a 21 de Julho), que Ana Luena encenará a partir da pintura de Paula Rego e de um conto inédito de Afonso Cruz sobre a experiência de um orfanato feminino no Portugal dos anos 60; e Wild Spring (TNSJ, 18 a 28 de Julho), regresso do Ensemble à escrita do dramaturgo inglês Arnold Wesker, com Emília Silvestre a encarnar uma actriz famosa em conflito consigo própria e com o mundo.

Pelo meio, Nuno Carinhas realça também a chegada, finalmente, ao palco da Praça da Batalha de Sopro (12 a 22 de Junho), criação do director artístico do D. Maria II, Tiago Rodrigues que teve estreia mundial no Festival de Avignon de 2017. E também admite a curiosidade que lhe desperta A Boda, de Bertolt Brecht (TNSJ, 30 de Maio a 8 de Junho), co-produção com o Centro Cultural de Belém encenada por Ricardo Aibéo – que foi seu aluno no Chapitô. 

Três festivais

Intercalando este vasto calendário, os três palcos do TNSJ receberão também produções de outros tantos festivais. O primeiro é o BoCA – Biennial of Contemporary Arts, cuja segunda edição abre a 15 de Março e que, entre 10 e 18 de Abril, terá neles dois espectáculos: Cattivo (MSBV), da coreógrafa Marlene Monteiro Freitas, uma “instalação para estantes de partituras e outros materiais” que explorará as propriedades expressivas das estantes musicais e seus estados emocionais; e Hello My Name Is, de Edward Bond (TeCA, 17 e 18 de Abril), regresso ao Porto, vindo da Austrália, do actor e encenador Paulo Castro, com o actor José Da Costa a reflectir sobre a violência sofrida pelo povo de Timor-Leste sob o jugo da Indonésia.

Do Festival DDD – Dias da Dança, o palco do São João vai acolher três espectáculos: Um Encontro Provocado, produção da Companhia Paulo Ribeiro sobre o tema da violência enquanto sentimento humano, com coreografia de Henrique Rodovalho (26 a 28 de Abril); Fúria (2 e 3 de Maio), regresso ao Porto de Lia Rodrigues, figura tutelar da dança brasileira, com uma criação estreada em Novembro passado em Paris em que recria “um mundo tumultuado por uma multitude de questões sem resposta, atravessado por sombras e imagens fulgurantes, de contastes, de paradoxos”; e Clarão (10 a 12 de Maio), uma produção Circolando feita a partir do Serapeum de Panóias, recentemente estreada em Vila Real.

Regressado ao seu antigo calendário de Maio, o FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) passará igualmente pelos três palcos do TNSJ. Ali trará Preto (TeCA, 16 e 17 de Maio), espectáculo sobre o tema do racismo, dirigido pelo brasileiro Marcio Abreu; Tchékhov É um Cogumelo (TNSJ, 18 e 19 de Maio) , adaptação de As Três Irmãs, do dramaturgo russo, com encenação de André Guerreiro Lopes, para a companhia paulista Estúdio Lusco-Fusco; e, finalmente, Yo Escribo. Vos Dibujás, de Federico León (MSBV, 23 e 24 de Maio), regresso ao Porto deste dramaturgo e encenador argentino para uma residência artística de que resultará um espectáculo sobre o tema do autoconhecimento.

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