A humanidade made in China

He Jiankui, que anunciou ter sido o primeiro a editar o genoma de pelo menos duas bebés, foi descrito como o “Frankenstein chinês”. É uma alcunha desajustada, pois a personagem de Victor Frankenstein reanimou uma quimera feita de partes de cadáveres, um feito tecnológico extraordinário (embora fictício). Não se sabendo ainda os detalhes do feito de He Jiankui, quem o ouviu suspeita de que ele foi mais ousado do que genial, tendo até sido algo amador: amador na imprudência de utilizar em embriões humanos viáveis uma técnica potencialmente perigosa, amador na decisão desnecessária de editar um gene que confere resistência ao HIV mas aumenta a vulnerabilidade a um outro tipo de vírus, e amador na execução, pois a edição não terá sido 100% bem-sucedida. É também uma alcunha infeliz, pois Frankenstein criou um monstro que o infernizou e He Jiankui apenas editou o genoma de bebés que – com alguma sorte – crescerão saudáveis e protegidas da exposição pública, nunca se revoltando contra o criador. É, por fim, uma má escolha, pois a referência cultural que lhe assenta bem é o pirómano grego Heróstrato, que em 356 A.C. terá destruído o templo de Artemis com um único objectivo: ser lembrado para sempre.

Não sabemos se o Heróstrato chinês terá o sucesso do seu predecessor grego, dada a eficiência com que as ditaduras apagam os cidadãos incómodos de fotografias. Cientistas de todo o mundo, diversas associações de cientistas chineses e as autoridades chinesas coincidiram na condenação pública de He Jiankui, mas por motivos diferentes. Nas sociedades ocidentais desenvolvidas, a menos que o objectivo seja prevenir ou eliminar uma doença, a selecção ou manipulação do genoma de embriões humanos suscita desconfiança e até horror. Ao receio do risco médico junta-se a oposição ética à ingerência do homem na natureza (ou num pelouro que pertencerá a Deus) e a preocupação política quanto à possibilidade de o acesso privilegiado das elites a esta tecnologia exacerbar as desigualdades sociais, reforçando-lhes o cunho biológico.

Na China estas preocupações pouco valem e a aposta na medicina reprodutiva e na genética tem sido galopante. Daí que o desconforto dos dirigentes chineses quanto ao feito de He Jiankui se deva menos ao desrespeito pelos direitos humanos e mais ao vexame de se verem ultrapassados por um cidadão que, fintando as vagas restrições existentes, lhes manchou a imagem de eficiência totalitária, roubando-lhes ainda a glória de anunciar ao mundo um feito histórico. Porque não sobram grandes dúvidas de que o primeiro país que porá em marcha um programa de edição do genoma humano será a China.

É bem conhecida a vocação da China para a “biopolítica”, isto é, o controlo da vida dos seus cidadãos, da gestão da saúde e higiene à sexualidade e natalidade, sobretudo desde a imposição da política do filho único, que vigorou (com ajustamentos) entre 1979 e 2015, com consequências dramáticas, nomeadamente o aumento do aborto e infanticídio de fetos e bebés do sexo feminino. Também impensável nas sociedades abertas ocidentais seria a lei eugenista de 1994, que dificultou o casamento e a reprodução aos chineses doentes.

Hoje, o diagnóstico genético pré-implantação cresce cinco vezes mais depressa na China do que nos EUA. É chinesa uma das maiores empresas do mudo de genómica e chinês um ambicioso projecto de sequenciamento do genoma de pessoas dotadas de grande inteligência. A China é o único país a rivalizar com os EUA no número de publicações científicas envolvendo a revolucionária técnica de edição do genoma CRISPR, que He Jiankui utilizou e tanta esperança e temor tem suscitado, assim como o primeiro a usar esta técnica para tratar doentes de cancro e a ter (em 2015) editado embriões humanos (inviáveis) com financiamento estatal.

O cidadão He Jiankui demonstrou como têm sido ineficazes os sucessivos apelos dos mais prestigiados cientistas para que não se use ainda a tecnologia CRISPR em embriões humanos, bem como a inutilidade à escala global das restrições que vão vigorando em diferentes países. Mas será a determinação do regime autocrático chinês em conseguir o melhoramento genético das suas populações que colocará uma pressão crescente nas sociedades abertas ocidentais e testará até onde estamos dispostos a ir na recusa do eugenismo e na defesa da equidade no acesso a esta tecnologia.

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