Há pelo menos 80 mil anos os humanos já andavam pelo Vale do Côa

Arqueólogos e outros especialistas internacionais apresentaram no Museu do Côa as últimas descobertas no que toca à arte rupestre. Thierry Aubry representou a equipa da casa para falar de mais uma rocha com “gravuras animadas” e de um “buraco” que faz recuar a ocupação humana do vale. Já sabíamos que os neandertais por lá tinham passado, mas não sabíamos que o tinham feito tão cedo.

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Um dos auroques da Rocha 38 da Penascosa Cortesia: Fundação Côa Parque
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O mesmo auroque com um sublinhado esquemático para ajudar à leitura Cortesia: Fundação Côa Parque
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Outro dos auroques da Penascosa 38 Cortesia: Fundação Côa Parque
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O mesmo animal com o sublinhado esquemático Cortesia: Fundação Côa Parque
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O local da escavação das Rochas 37 e 38 do núcelo da Penascosa Cortesia: Fundação Côa Parque
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O corte estatigráfico do Salto do Boi, o tal "buraco" com cinco metros de profundidade Cortesia: Fundação Côa Parque

Imagine-se um caçador de há milhares de anos a observar uma série de auroques em estado selvagem (falamos de um tempo em que as populações humanas eram ainda nómadas e estavam longe de domesticar animais). Imagine-se esse caçador, mais tarde, a reproduzir a cena observada numa rocha do vale do Côa, procurando mostrar estes bovinos de grandes dimensões hoje extintos em interacção, com movimento, como quem conta uma história breve.

“Ainda temos de fazer o levantamento completo desta rocha, o desenho pormenorizado, mas parece-nos haver nela, para além da sugestão do movimento, um sentido de composição que é muito raro na arte rupestre que conhecemos até aqui no vale”, diz Thierry Aubry, um arqueólogo que trabalha no vale do Côa desde 1995, quando a área não era ainda um parque arqueológico (passou a sê-lo em 1996) e muito menos estava classificada como património mundial (1998).

Foi precisamente para festejar os 20 anos da atribuição do selo da UNESCO às gravuras do Côa, e para dar conta dos avanços que nas últimas décadas se fizeram no estudo da arte paleolítica naquele território e noutros, que se reuniram de 4 a 6 de Dezembro dezenas de especialistas nacionais e internacionais no Museu do Côa.

Aubry e a sua equipa estiveram entre os investigadores que apresentaram os resultados mais recentes. Foram falar daquela que está classificada como a Rocha 38 da Penascosa (no parque, as rochas estão numeradas e indexadas ao conjunto em que se encontram), o mais visitado dos núcleos de gravuras do Côa, e de um sítio arqueológico que permite rever a cronologia do vale e afirmar, “com certeza”, que há pelo menos 80 mil anos tinha já ocupação humana, o que equivale a dizer que já os neandertais andaram por ali.

Quando se fala do Côa, admite Aubry, as pessoas pensam de imediato em gravuras rupestres e por isso quiseram mostrar a Rocha 38 da Penascosa, com as três fêmeas de auroque (“a configuração do dorso mostra que não são machos”) num “jogo” que parece um “pequeno filme de animação”, mas o trabalho arqueológico no Côa não se resume à identificação de animais gravados ao ar livre.

“Eu percebo o entusiasmo porque encontrar gravuras que sugerem movimento, uma composição, é muito raro”, diz o arqueólogo, referindo-se aos auroques desta rocha identificada há pouco mais de duas semanas, que terão entre 15 e 18 mil anos.

No Côa, explica, estão inventariadas 1200 rochas gravadas — as mais antigas com cerca de 30 mil anos, as mais recentes das décadas de 1950-60. Dessas 1200, 500 são do paleolítico e entre estas apenas três têm “animais animados”: para além destes auroques agora descobertos, há outros no núcleo da Ribeira de Priscos, “em que a associação entre os animais não é tão clara”, e as célebres cabras da Rocha 3 da Quinta da Barca, uma das imagens de marca do parque.

Tão ou mais importante que o trabalho com as gravuras é o do estudo dos contextos em que viveram os artistas do Côa e, em última análise, o estabelecimento de uma cronologia de ocupação do vale. Por que razões escolheram os caçadores recolectores esta área? E quando é que começaram a fazê-lo?

O sítio do Salto do Boi

Na margem esquerda do Rio Côa, três quilómetros a montante dos núcleos de gravuras rupestres paleolíticas da Penascosa e da Quinta da Barca, fica o sítio do Salto do Boi, assim chamado por ser um dos locais mais estreitos do vale. Foi aí que, em 1995, Aubry, que então trabalhava com o arqueólogo João Zilhão, ajudou a identificar um sítio arqueológico que só começou a ser estudado mais aprofundadamente nos últimos dois anos.

Delimitou-se uma área de seis metros quadrados e escavou-se em profundidade (cinco metros) para poder estudar a sequência estratigráfica (sucessão de estratos na rocha sedimentar), o que permite aos especialistas compreender melhor as épocas de ocupação de determinado território.

É este “buraco” do Salto do Boi que permite agora a Aubry dizer que os neandertais — grupo de humanos contemporâneo da nossa espécie (homem moderno) cujo retrato tem vindo a ser “reconfigurado” nos últimos anos por especialistas em todo o mundo, incluindo um dos arqueólogos portugueses que está na origem da criação do Côa, João Zilhão — viveram no vale antes do que até aqui se pensava (julgava-se que ali teriam vivido no máximo há 60 mil anos).

“Esta é a primeira vez que estudamos um contexto neandertal sedimentário no Côa. As datações chegaram há poucos dias e mostram que [esses humanos] andaram pelo vale há pelo menos 80 mil anos, mas é provável que tenham vindo até antes, há 90 ou 100 mil anos. Sabíamos que eles tinham andado por aqui porque já tínhamos encontrado ferramentas em pedra lascada e vestígios de fogueiras que podíamos associar aos neandertais, mas não tínhamos datações como as que temos agora.”

Acredita Aubry que os materiais recolhidos, depois de devidamente estudados, poderão mostrar a transição dos últimos neandertais para os primeiros homens modernos [os artistas do Côa] que ocuparam a Península Ibérica. Para já, os arqueólogos ainda não encontraram arte neandertal, o que muito teria agradado a Zilhão, mas essa possibilidade não está excluída. O que podem dizer hoje, segundo Aubry, é que parece não ter havido uma descontinuidade na ocupação humana do vale do Côa.

“Antes da arte mais antiga do Côa, com 30 mil anos, os humanos já queriam viver aqui.” Porquê? “É uma área com uma concentração especial de recursos.” Tem água e um clima mais ameno, protegido, o que no paleolítico superior e médio – um período mais frio e mais seco – é de levar em conta, explica o arqueólogo.

“Os animais viviam bem aqui porque os grandes herbívoros precisam de muita água. Também haveria peixes migratórios como o salmão e o sável. A diversidade ecológica cria o ambiente ideal para pequenos grupos de caçadores recolectores, nómadas, e é por isso que o vale funciona como um sítio de agregação. Eles passavam por aqui e usavam, pensamos nós, a arte rupestre como forma de identificação social, de pertença a um grupo.”

Para o ano, os arqueólogos regressam ao Salto do Boi.

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