O mar de pobreza que faz das ilhas o lugar de maior risco

Açores e Madeira são as zonas do país onde o risco de pobreza é mais elevado, de acordo com o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, feito pelo INE. Governos das duas regiões garantem estar atentos ao problema.

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gregório cunha
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Esta é a primeira de uma série de reportagens sobre pobreza. Acompanhe nos próximos dias o dossier O que é ser pobre hoje em Portugal?

Quando Alice se multiplicava para trabalhar de noite numa padaria e de dia num dos muitos hotéis que povoam a Madeira, estava longe de imaginar que aquele caminho, de sacrifícios e ausências, a levaria até ali. A precisar de um cabaz de comida para comer todos os meses.

Todo o dinheiro pelo qual trabalhou, cada cêntimo dele, desaparece agora como por negra magia ainda o mês não chegou a meio. Fica a angústia, a tristeza, e um inexplicável sentimento de culpa por a vida se ter desmoronado. “Eu fiz o melhor que pude. O que poderia eu mais fazer?”

Para o Instituto Nacional de Estatística (INE) está em risco de pobreza quem vive com menos de 468 euros mensais. Somando a pensão de viuvez que Alice recebe ao apoio pela invalidez pago pela Segurança Social e à reforma do tio com quem partilha a casa, chega-se a mais do que isso. Mas tudo é a dividir por três. Por ela, pelo tio, pelo filho desempregado e com um longo passado (e presente) de abuso de drogas. Sobra pouco. Demasiado pouco. Quando não falta.

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O resultado das noites a fio a amassar pão e das manhãs e tardes intermináveis a limpar quartos de hotéis é assim igual a nada. Dilui-se todos os meses em contas para pagar, dívidas para saldar, no balcão da farmácia e nos vícios e devaneios de um filho tresloucado que a aterroriza. “O que posso eu mais fazer?”, pergunta Alice. “Eduquei todos os meus filhos por igual. Os quatro.”

Os mais velhos, duas mulheres de 41 e 35 anos e um homem de 34, partiram quase sem olhar para trás. Ficou o mais novo, a quem todos lá em casa adivinhavam (ou desejavam) um futuro brilhante, que rompesse com aquele ciclo de pobreza. Não quis assim o destino. Não quis assim a heroína.

Alice, costas voltadas para a janela por onde vão desfilando vultos apressados de automóveis, guarda no colo uma folha de papel onde numa caligrafia redonda e cuidada foi anotando frase a frase, pensamento a pensamento, o que haveria de contar quando os jornalistas fossem lá a casa, ouvir a sua história. Não queria que lhe faltassem as palavras. Não faltaram.

“As pessoas deviam ser mais solidárias. Ninguém se importa com o que existe atrás da janela do vizinho. Ninguém...” Alice não deixa acabar a frase. “A Dra. Sílvia [Ferreira] é uma excepção. É a nossa santa.”

Refeições quentes

A directora técnica do Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA) no Funchal decerto rejeitará o epíteto, mas tem feito pequenos milagres diários. A associação, que chegou às ruas do Funchal há dez anos para distribuir refeições quentes a pessoas em condição de sem-abrigo, depressa cresceu para outras valências, empurrada pela necessidade.

Actualmente mobiliza 325 voluntários distribuídos pelo Funchal, a maioria, e pelo concelho vizinho de Santa Cruz, apoiando mais de 1500 pessoas. Por ano, entre a cantina social e as refeições quentes e embaladas que entrega todas as noites em casa de mais de meia centena de famílias, do centro saem quase 63 mil refeições.

Uma vez por mês, meio milhar de famílias sinalizadas de toda a ilha vão à sede do CASA levantar um cabaz de bens alimentares, feito à medida de cada um. “O que colocamos nos sacos varia de acordo com os produtos que temos, e também com as necessidades específicas de cada agregado familiar”, explica Sílvia Ferreira, apontando para as prateleiras do armazém, onde se alinham produtos doados por supermercados e particulares.

Acompanhamento social

Mais do que dinheiro o que falta a muitas destas famílias é acompanhamento social que lhes aponte caminhos e dê competências. “Perto de 80% das pessoas que acompanhamos não sabem gerir uma casa, e estão no limiar da pobreza”, explica Sílvia Ferreira, considerando “urgente” implementar um “programa sério e contínuo” para romper com esta pobreza geracional.

O Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, conduzido este ano pelo INE mas a incidir nos rendimentos de 2017, coloca a Madeira como a segunda zona do país onde o risco de pobreza é mais elevado, só superada pelos Açores. Estes números — 27,4% da população madeirense corre risco de pobreza, enquanto a média nacional é de 17,3% — são lidos com cautela pelo governo da região.

“As regiões ultraperiféricas, como é o caso da Madeira, regra geral, não são propriamente as mais ricas, dispondo de factores endógenos muito específicos, daí que a tendência será olharmos para o factor ultraperiférico como uma variável que não se pode colocar de lado quando estamos a analisar estas questões de comparações com os territórios continentais”, responde ao PÚBLICO a Secretaria Regional da Inclusão e Assuntos Sociais, Rita Andrade.

O Funchal, embora sublinhando o carácter provisório dos números revelados, prefere compará-los com outras regiões ultraperiféricas europeias, onde as realidades são mais próximas, como as Canárias, onde o risco de pobreza é de 30,5%, ou os Açores (31,5%).

Na Madeira, adianta Rita Andrade, são canalizados anualmente perto de 30 milhões de euros para apoiar famílias carenciadas. A secretaria regional destaca os 22,1 milhões de euros transferidos para as instituições particulares de solidariedade social, o meio milhão de euros para dar respostas aos emigrantes regressados da Venezuela e os 4,2 milhões destinados a prestações mensais de cooperação familiar.

Mas nem tudo são más notícias. A taxa de desemprego regional, que atingiu dois dígitos no pico da crise económica, e que em 2015 estava em 15,8%, está agora nos 8,9%. Mesmo assim, a falta de trabalho continua a ser um problema. Nos bairros sociais, o executivo madeirense apoia 4400 famílias.

Isabel, 56 anos, faz parte de uma dessas famílias. O marido ficou desempregado em 2008, e foi nessa altura que conheceu o CASA, onde ajuda e é ajudada. Lá em casa, no Bairro de Santo Amaro, na periferia do Funchal, não entram nem 700 euros por mês. É o salário do filho. “Ele é jovem, um bom rapaz, não tem de nos sustentar”, desabafa Isabel, com o avental azul do CASA, onde também faz voluntariado, a cair-lhe no peito.

Já foram bater à porta da Segurança Social, a pedir um qualquer apoio. São quatro pessoas em casa. O marido, cego de um olho e em risco de perder o outro. Isabel, que vai fazendo limpezas em casas estranhas para tentar fintar a pobreza. A filha de 19, a tentar estudar. Quatro pessoas com 700 euros. A Segurança Social diz que é suficiente. Isabel encolhe os ombros.

Para estes, e outros casos, a Madeira criou o Laboratório de Políticas Sociais. A ideia, sintetiza Rita Andrade, é apresentar um documento estratégico que resulte do estudo — “recolha e o tratamento da informação existente e a realização de um diagnóstico exaustivo sobre o risco de pobreza e exclusão social” — que vai ser desenvolvido em parceria com a Universidade da Madeira.

Famílias numerosas

Nos Açores, as mesmas preocupações. A Secretaria Regional da Solidariedade Social, liderada por Andreia Cardoso, justifica os números do INE com “questões estruturais e inerentes à própria condição arquipelágica” que passam também pela componente geracional.

Na região autónoma, diz o gabinete de Andreia Cardoso, existe uma preponderância de famílias numerosas. “As famílias com cinco ou mais elementos representavam 6% das famílias a nível nacional, quando nos Açores tinham um peso de 14%, chegando, em alguns concelhos da ilha de São Miguel, a valores acima dos 20%”, argumentando que a opção por uma família numerosa tem um “impacto significativo” nos números do risco de pobreza. Os baixos salários também. A economia açoriana assenta muito na agricultura, nas pescas e na construção civil. “Os níveis salariais praticados, associados a uma maior dimensão das famílias, colocam, proporcionalmente, mais pessoas abaixo do limiar da pobreza do que no resto do país.”

Os Açores, ressalva a secretaria regional, dispõem de um conjunto de apoios não monetários que “não têm tradução” nas contas da taxa de risco de pobreza, como o acesso gratuito à saúde ou a comparticipação nas creches, mas, reconhece o governo, existe um longo caminho a percorrer.

Esse primeiro passo, confia o executivo açoriano, assenta na Estratégia Regional de Combate à Pobreza e Exclusão Social, aprovado este ano, e que pretende ser o documento orientador para a próxima década. “É um caminho longo, geracional, mas que nos permitirá romper com estes ciclos de reprodução da pobreza.”

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