"Brexit": a legitimidade de um novo referendo

O "Brexit poderá ter sido inesperado", mas não foi seguramente um acontecimento absolutamente imprevisível. De um certo modo ele tinha já sido várias vezes pré-anunciado.

“O futuro tratado de que os senhores se ocupam não tem a mais pequena hipótese de ser aceite; se algum dia o fosse, não teria qualquer hipótese de ser ratificado; e se alguma vez fosse ratificado, seria impossível de aplicar. E se porventura viesse a ser aplicado, seria totalmente inaceitável para a Inglaterra. (...) Senhor Presidente, meus senhores, adeus e boa sorte”. Estas palavras terão sido proferidas em 1955, em Bruxelas, por um alto funcionário britânico chamado Russell Bretherton. Esse algo a que se referia Bretherton era nada mais nada menos que o tratado fundador do mercado comum europeu e os senhores a quem se dirigia eram figuras políticas importantes que representavam os seis países que anos antes haviam criado a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. A presidir a essa reunião estava o ministro dos Negócios Estrangeiros belga, Paul-Henri Spaak, que, devidamente articulado com Jean Monet, havia desempenhado um papel fundamental na célebre conferência de Messina. Bretherton, que ali se encontrava porque o governo britânico tinha sido convidado a participar no processo pós-Messina, foi claro, contundente e radical na forma como exprimiu o seu absoluto cepticismo em relação à possibilidade de constituição de um mercado comum europeu.

É bom recordar que no seu famoso discurso de 1946, pronunciado em Zurique, Winston Churchill defendera a constituição de “uma espécie de Estados Unidos da Europa estribados numa aliança indestrutível entre a França e a Alemanha”. Posição que reiterou em 1948 no Congresso da Haia. Para Churchill, uma coisa era o destino da Europa continental, coisa diversa era o destino de uma Grã-Bretanha com vocação imperial e empenhada numa relação especial com os Estado Unidos da América. Se o grande estadista britânico ainda projectava uma elevada expectativa na capacidade de entendimento entre os europeus continentais, já o alto funcionário Bretherton parecia não cultivar grandes esperanças em relação a essa questão. Coincidiam num aspecto: não lhes passava pela cabeça que o Reino Unido pudesse algum dia participar num projecto comum europeu.

A história encarregou-se de desmentir cabalmente Bretherton e de se encaminhar num sentido diferente do preconizado por Churchill. O mercado comum europeu tornou-se uma realidade e os britânicos não tardaram muito a solicitar a adesão ao mesmo. Acabaram por alcançar tal objectivo a duras penas, depois de verem a sua candidatura rejeitada por duas vezes devido à oposição do General De Gaulle. A 28 de Outubro de 1971, Westminster acolheu um debate duro e intenso que terminou com a aprovação da proposta do pedido de adesão à Comunidade Económica Europeia. Era então primeiro-ministro Eduard Heath, um conservador que sempre se revelara profundamente pró-europeu. Vários deputados conservadores votaram, contudo, em sentido oposto e a posição defendida pelo primeiro-ministro só obteve sucesso porque beneficiou do apoio de alguns deputados trabalhistas, que tinham entrado em dissidência com a posição oficial do seu partido, contrária à integração na Comunidade Europeia. O debate foi de tal maneira polémico e desencadeou paixões de tal ordem que, no final, o então deputado trabalhista Roy Jenkins teve de sair apressadamente para escapar aos insultos e tentativas de agressão dos seus próprios companheiros de partido. Jenkins viria mais tarde a desempenhar as funções de Presidente da Comissão Europeia e acabaria por abandonar o Partido Trabalhista em 1981. Conjuntamente com David Owen, Bill Rodgers e Shirley Wiliams integrou um grupo de altas figuras dissidentes do Partido Trabalhista que dariam origem ao Partido Social Democrata, grupo esse que passaria à história sob a designação do Bando dos Quatro.

Nas décadas seguintes, o Reino Unido manteve sempre uma relação complexa, ora mais próxima, ora mais distante, com os seus parceiros europeus. Por razões diversas, umas atinentes à singularidade do seu modelo de soberania parlamentar, outras resultantes da prevalência de uma cultura política mais liberal do que democrática, e ainda por outras assentes numa perspectiva muito própria da sua inserção geopolítica, os britânicos nunca revelaram um excessivo entusiasmo com o projecto europeu.

O "Brexit poderá ter sido inesperado", mas não foi seguramente um acontecimento absolutamente imprevisível. De um certo modo ele tinha já sido várias vezes pré-anunciado. O que é surpreendente é tudo quanto se tem passado no período pós-"Brexit": uma elite política desorientada, uma sociedade atordoada, um país em risco de desagregação. A primeira-ministra Theresa May fez o melhor que pôde num contexto profundamente desfavorável. Os seus opositores, à direita e à esquerda, não apresentam alternativas claras. Vive-se um tempo de profunda incerteza.

Contrariamente ao que apregoam os habituais críticos da União Europeia, a responsabilidade por tudo isto recai inteiramente no povo britânico, que se deixou maioritariamente enlevar por um discurso demagógico e mentiroso. Constatadas as consequências da decisão tomada, começam a ouvir-se vozes reclamando a realização de um novo referendo. São vozes respeitáveis que provavelmente deveriam ser escutadas. A realizar-se esse novo referendo ele não se destinaria a corrigir de modo ilegítimo os resultados do referendo anterior. Destinar-se-ia, isso sim, a dar de novo a voz ao povo britânico depois de conhecidas as consequências reais de uma saída da União Europeia. Não é provável que tal venha a suceder, mas se ocorresse constituiria um procedimento irrepreensivelmente democrático.

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