Felismina ficou sem abrigo com uma filha pequena e um filho deficiente

Há na vida de Felismina um antes e um depois de Ricardo ter nascido com uma deficiência. Dedicou-se inteiramente a ele. Hoje vive com a família num alojamento temporário.

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André Rodrigues

Esta é a quinta de uma série de reportagens sobre pobreza. Acompanhe nos próximos dias o dossier O que é ser pobre hoje em Portugal?

Felismina Moutinho está sem abrigo. Não é expressão que adopte, mas é a que melhor descreve a sua situação, do companheiro, do filho adulto e deficiente e da filha menor. Dormem no Centro de Alojamento Social da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Ela num quarto com os filhos. O companheiro noutro quarto com um desconhecido.

A mulher, de 46 anos, nunca pensou ver-se num sítio daqueles. Horas para entrar e sair do quarto, nenhuma hipótese de cozinhar, uma toalha de banho e uma toalha de rosto por semana, convívio forçado com estranhos. “Os seguranças olham para nós como... gente que não tem mesmo nada, que está mesmo por baixo.”

Há na sua vida um antes e um depois de Ricardo ter nascido, já lá vão 20 anos, com uma síndrome semelhante à trissomia 21. Contava cinco anos, o seu “estado de saúde complicou-se”. Felismina trabalhava como auxiliar de acção médica e fez contas à vida. “Se pagasse a alguém para ficar com ele, nunca iria fazer o que eu fiz. Abdiquei da minha vida para ajudar o Ricardo. E a dona Alice, a avó paterna do Ricardo, sempre me apoiou.”

Em Setembro, a Direcção-Geral da Comissão Europeia que avalia as políticas sociais na Europa publicou um estudo a chamar a atenção para o facto de os cuidadores informais correrem maior risco de “ansiedade, depressão, exaustão, isolamento”. Correm também “agravado risco de pobreza e mais dificuldades no mercado de trabalho”. Conforme a mesma investigação, este como outros riscos de pobreza tem género: em 2016, 7,4% das mulheres desempregadas em Portugal nem procuravam um trabalho, porque cuidavam de um familiar (criança ou um adulto incapaz), percentagem que descia para 0,8% nos homens.

Cuidar de Ricardo é a grande ocupação de Felismina. O rapaz precisa de ajuda para tomar banho, para se vestir, para se calçar, para comer. Volta e meia, há que levá-lo a consultas, exames. Todas as tardes, terapia da fala numa parte da cidade ou fisioterapia noutra parte da cidade. E está à espera de vaga para a hidroterapia, que há-de ocupar-lhe duas manhãs por semana.

O pai de Ricardo nunca assumiu tal papel. “Eu estava grávida, ele foi morar para Aveiro. Foi preciso a GNR ir buscá-lo, porque ele não vinha fazer o exame de paternidade”, diz ela. “Nunca deu nada ao Ricardo.” A avó, essa, morava numa casa antiga e espaçosa e deu guarida a Felismina e ao filho.

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Felismina nunca pagou renda. Pagava parte das contas de água, luz e gás. Há oito anos, teve uma filha. E passou a morar no rés-do-chão com as duas crianças e o novo companheiro. Continuava, porém, a servir-se do primeiro andar, onde permanecia Alice. Ia assumindo mais cuidados com a casa à medida que ela ia envelhecendo.

Ao que diz, terá sido mais ou menos por essa altura que o pai de Ricardo, electricista de profissão, tornou à casa materna, ficando alojado nas águas furtadas. E nem esta cercania o terá aproximado do filho. Ricardo refere-se a ele como “o velho”.

Alice morreu em Outubro de 2017. O pai de Ricardo nada disse, mas logo em Novembro fez uma permuta da casa. “Começou a aparecer com roupas caras e até comentámos que devia ter fintado alguma mulher.” Ao que diz Felismina, o pai de Ricardo só a avisou em Fevereiro. “Tínhamos de sair até Novembro/Dezembro deste ano.”

Felismina e o companheiro, Vasco, de 42 anos, começaram a pensar no que haviam de fazer à vida. Para cuidar do filho, está há muito fora do mercado de trabalho. Para que o companheiro realizasse o seu sonho de ser arquitecto, fazia a gestão doméstica apenas com o rendimento social de inserção, o apoio à terceira pessoa e os abonos. Sem renda para pagar, apertando aqui e ali, até conseguia. E agora? O pai de Ricardo podia mesmo pôr o filho deficiente na rua? Felismina pediu apoio jurídico.

Não tiveram o tempo esperado para encontrar uma alternativa. Em Abril, o novo proprietário avisou-a: “Isto é meu. Tem de sair até ao final do mês.” E ela ficou atrapalhada. “Ir para onde?” Em Junho, o pai de Ricardo deixou-lhe um bilhete: “Ligue-me. É urgente. Não se esqueça que tem de sair da casa o mais rápido possível. O novo dono precisa de fazer obras no prédio.”

Houve outros avisos. Ela tem tudo guardado. Mostrou os papéis na primeira vez que falou com o PÚBLICO, no princípio de Novembro, estava ela num alojamento local. Lúcia e Ricardo viam televisão na pequena sala. E ela conversava na cozinha, debruçada sobre a mesa. Vasco estava nas aulas. 

O último aviso de que se lembra veio no dia 22 de Agosto. “Tínhamos de sair até 20 de Setembro, senão, punha as nossas coisas na rua. Eu disse-lhe que chamava a polícia e que o tribunal analisaria a situação. Ele disse que não queria polícia, nem tribunal.”

Ainda “não tinha a vida resolvida”. E estava informada. “Os advogados disseram-me que eu não tinha direito à casa, mas o Ricardo tinha, porque é filho dele e tem incapacidade superior a 70%.” Ou o pai deixava o filho continuar a morar ali, ou a casa era vendida e o rapaz recebia uma parte. “Pediram a impugnação da permuta.”

No dia 24 de Setembro, um familiar do novo proprietário terá mudado a fechadura da entrada para o primeiro andar. No dia 25, terá desligado os contadores de água e luz de toda a casa. “Vim para casa de uma senhora”, diz Felismina. Não podiam ficar sem água e sem luz.

Ficou uns dias na casa da tal senhora. Outros tantos na Pousada de Juventude. Andaram um mês a gastar a poupança em pensões, residenciais ou alojamentos locais. Até ficou de boca aberta quando percebeu que lhes cobravam taxa turística. “Ainda passo por ser turista!”, indigna-se.

Só salvara alguns dos pertences que, no dia 4 de Outubro, o novo proprietário colocou na rua. Guardava-os por favor em várias partes. Procurava casa, descrente. Ricardo deixara de receber 150 euros de abono bonificado e passara a receber 269 da nova prestação social para a inclusão, mas... “Isso é para as coisas dele.” Dá muita despesa. “Desenvolveu uma hepatite auto-imune...”

Que solução podia encontrar uma família de quatro pessoas com 269 euros de prestação social para a inclusão, 540 euros de rendimento social de inserção e 37 euros de abono de família? Viu apartamentos T1 a 500 ou 600 euros. Procurar mais afastado do centro requer gastar dinheiro em passes e não anula outro entrave: exigem três meses de entrada, recibos de vencimento que nem ela nem Vasco têm e fiador. “A minha última hipótese seria habitação social.”

Há cada vez mais histórias de despejo pelo país fora. “Ainda há poucas horas me chegou mais um caso de pessoas que não têm possibilidade de pagar renda e vão ser despejadas”, lamentava, por estes dias, Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas, numa conversa telefónica. A taxa de pobreza baixou para 17,3%, mas a linha de pobreza é 60% da mediana do rendimento das famílias. Não tem em conta as despesas. E as despesas com a renda subiram muito. “Custa muito não ter pão na mesa, mas estar a comer debaixo da ponte é muito pior.”

No dia 17 de Outubro, Felismina recorreu à Domus Social, a empresa municipal de habitação. Está à espera. Não sabe quanto tempo terá de esperar. Há muita gente à espera. Naquela altura, segundo a Câmara do Porto, a lista de espera para habitação social ultrapassava os mil fogos. Quem tem uma criança e um filho deficiente é considerado prioridade, mas quantas prioridades haveria?

No dia 6 de Novembro, a família entrou no Centro de Acolhimento Social da Santa Casa da Misericórdia do Porto. “É um ambiente pesado”, suspira Felismina. “A minha filha não gosta de ali estar. O meu filho ri-se ao ver cuspir ou atirar lixo para o chão. Para ele, é tudo uma paródia. Até quando viu as nossas coisas na rua ele se riu.”

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