Taxas de vacinação contra sarampo não garantem imunidade em Lisboa e Algarve

No relatório do Conselho Nacional de Saúde são pela primeira vez apresentados dados desagregados que permitem ver as discrepâncias e a grande variabilidade a nível regional numa série de indicadores, como o da vacinação e o acesso a médicos de família.

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Paulo Pimenta

A média nacional de crianças vacinadas contra o sarampo, papeira e rubéola aos seis anos é muito elevada, mas há grandes disparidades geográficas. Nos agrupamentos de centros de saúde de Lisboa e do Algarve a cobertura com a segunda e última dose desta vacina é inferior a 95%, considerada a “percentagem desejável para assegurar a protecção da comunidade contra o sarampo, através da chamada imunidade de grupo”. O alerta surge no segundo estudo que o Conselho Nacional de Saúde (CNS) fez desde que foi criado e que esta quarta-feira vai ser apresentado em Lisboa, num fórum, na Assembleia da República.

Intitulado Gerações mais saudáveis. Políticas públicas de promoção de saúde das crianças e jovens, o relatório deste órgão independente consultivo do Governo, que visa garantir a participação dos cidadãos na definição de políticas, traça um retrato exaustivo do que tem sido feito e do que falta fazer neste grupo etário (0 aos 18 anos) tão sensível, elencado as omissões, as redundâncias e até as contradições das políticas de saúde a este nível.

Quando se olha para os dados sobre a cobertura vacinal da última dose da vacina contra o sarampo nas crianças que completaram seis anos em 2017, constata-se que nenhum dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) do Algarve tem uma cobertura vacinal superior a 95%, a tal percentagem que se convencionou definir ser necessária para conseguir a imunidade de grupo (proporção de pessoas com um nível de concentração de anticorpos acima do qual se pensa que estão protegidas). A imunidade de grupo protege não apenas os vacinados, mas também os não imunizados, que beneficiam com a não circulação do vírus.

No ACES do Algarve Central, a cobertura vacinal é mesmo inferior a 90%, tal como nos agrupamentos de centros de saúde da área urbana de Lisboa. Os de Lisboa Norte (85,5%), Cascais (86,7%) e Amadora (88%) têm todos taxas “particularmente baixas”, acentuam os autores. Com valores inferiores a 95% surgem também os ACES Lisboa Ocidental/Oeiras, Lisboa Central, Loures/Odivelas, Sintra e Almada/Seixal. Na região Centro, o ACES Pinhal Interior Norte regista uma cobertura de 91,7%.

Em Abril de 2017, a morte de uma jovem de 17 anos, na sequência de uma pneumonia bilateral, foi a primeira em muitos anos provocada pelo sarampo em Portugal. Nessa altura, Teresa Fernandes, da equipa de coordenação do Programa Nacional de Vacinação, admitia ao PÚBLICO que havia pequenas comunidades, a nível local, com taxas mais altas de não vacinados onde o risco aumenta. A tutela sabia onde estavam estas “bolsas de não-vacinação”, mas a especialista preferiu então não especificar dados para não lançar o pânico e porque a nível local e regional estavam a ser desenvolvidas acções de sensibilização para a imunização.

No relatório do CNS, e esta é uma das mais-valias do documento, são “pela primeira vez” apresentados dados desagregados que permitem ver as discrepâncias e a grande variabilidade a nível regional relativamente a uma série de indicadores, como o da vacinação, destaca Gonçalo Figueiredo Augusto, médico de saúde pública e perito do Conselho. Sem conseguir precisar quais são as razões que justificam as mais baixas taxas de vacinação contra sarampo aos seis anos, o perito observa que podem estar aqui em causa “atrasos na vacinação” nesta idades mais tardias e, eventualmente, a existência de “bolsas de não vacinação”. São questões que, advoga, têm que ser monitorizadas ao nível local e dos ACES.

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Médicos de família

Esta visão mais aprofundada permite igualmente perceber que são grandes as desigualdades no acesso a médicos de família, dois anos após a entrada em vigor da lei que estipula que nenhuma criança deve ficar privada de clínico assistente no Serviço Nacional de Saúde. O certo é que em Outubro passado havia ainda mais de 150 mil crianças e jovens (com menos de 18 anos) sem médico de família atribuído, e a maior parte (110 mil) reside na região de Lisboa e Vale do Tejo.

Enquanto no Norte e Centro vários ACES tinham cobertura total ou quase total neste grupo etário, em vários agrupamentos de Lisboa e Vale do Tejo e do Algarve, de novo, a cobertura era deficiente  — nos ACES da Amadora, Arco Ribeirinho, Arrábida e Barlavento Algarvio cerca de um quarto das crianças não tinham médico de família. Mas a pior situação era a da Madeira, onde a cobertura se ficava pelos 61%. 

São ainda identificadas discrepâncias na distribuição de recursos humanos nas equipas de saúde escolar. O programa nacional para esta área preconiza a alocação de 30 horas por semana por cada grupo de 2500 alunos, mas muitos elementos destas equipas, além de não terem carga horária alocada ao programa, "são muitas vezes desviados para outras tarefas", lamentam os membros do CNS.

Saúde mental é prioritária

Sublinhando que todas as intervenções nas fases precoces são “opções inteligentes por parte dos governos”, os conselheiros traçam um retrato da promoção de saúde em várias áreas. Uma destas áreas é a saúde mental, que consideram prioritária. As estimativas da Organização Mundial de Saúde indicam que entre 10% a 20% das crianças e adolescentes terão um ou mais problemas de saúde mental, mas apenas um quarto é referenciada para serviços especializados.

Em Portugal, nota Gonçalo Figueiredo Augusto, não existem dados específicos para este grupo etário. O que se sabe é que a oferta de cuidados de saúde mental e da adolescência está muito longe de suprir as necessidades da população e fica até muito aquém das metas traçadas no último plano nacional para este área. Isto apesar de vários estudos indicarem que "os ganhos económicos obtidos com a intervenção psicológica podem ser até 17 vezes superior aos valores investidos".

Mas o estudo foca muitas outras áreas, como a obesidade infantil, a saúde oral e os problemas associados ao ambiente em que as crianças e jovens crescem, incluindo as doenças respiratórias e os acidentes. Identificam-se as políticas nacionais, mas também projectos a nível regional e local, alguns muito bem sucedidos mas que não foram alargados ao resto do país. Por exemplo, a versão electrónica do Boletim de Saúde Infantil e Juvenil que arrancou, em fase piloto, no Alentejo em 2016, mas que ficou por ali.

Mais atenção aos adolescentes

Provavelmente devido à "enorme heterogeneidade desta população", as necessidades na faixa etária dos 0 aos 18 são também "satisfeitas de forma desigual", acentuam os conselheiros. Veja-se o que acontece com os programas e projectos de promoção da actividade física (e até certo ponto da alimentação saudável): destinam-se maioritariamente às crianças do pré-escolar e do 1.º ciclo de escolaridade, não se focando naqueles em que o excesso de peso é mais preocupante, como a adolescência. "É necessária uma maior atenção a este grupo etário", frisam.

Depois deste diagnóstico, os conselheiros recomendam mais medidas de limitação de acesso e publicidade a produtos alimentares não saudáveis, nomeadamente dentro das escolas e mesmo fora, lamentando que não esteja regulada a localização de restaurantes que promovem produtos não saudáveis.

Quanto às medidas de apoio social, lembrando que as crianças em Portugal estão em maior risco de pobreza do que a população em geral, recomendam a melhoria destes mecanismos, à semelhança do que aconteceu com os idosos, graças ao complemento solidário criado em 2009. 

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