Salário dos gestores subiu na crise e ignora desempenho das empresas

Estudo das remunerações dos executivos de empresas cotadas em Portugal mostra que salários cresceram durante os anos da crise até à saída da troika.

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O trabalho analisou as remunerações dos administradores executivos de 37 empresas cotadas na bolsa Euronext Lisboa Nuno Ferreira Santos/Arquivo

Os gestores das empresas cotadas em Portugal não vêem as remunerações influenciadas pelo desempenho da empresa. Ainda que a maioria tenha remunerações variáveis, a verdade é que o nível de remunerações parece depender antes de outros factores que nada têm a ver com a evolução do negócio, como a dimensão da empresa, o sector em que se insere ou o poder do gestor.

O contrário também é verdadeiro, ou seja, o desempenho da empresa não influencia o salário dos gestores, mostrando este uma certa rigidez. O mesmo é dizer que, no plano salarial, não há grandes razões para considerar que os gestores se sintam motivados a puxar pelo negócio, porque a remuneração não é influenciada pelo resultado, nem o resultado aumenta (ou diminui) de forma significativa aquilo que ganham.

Estas são duas das conclusões de uma tese de mestrado em Finanças que foi defendida e aprovada esta semana na Faculdade de Economia do Porto (FEP), sob orientação de Jorge Farinha. A autora da tese, Joana Real, recolheu informações e tentou analisar as contas de 2008 a 2016 de 37 empresas cotadas na bolsa portuguesa. Chegou à mesma conclusão de outros estudos, feitos anteriormente em Portugal sobre o mesmo tema. O que distingue a tese de Joana Real dos trabalhos precedentes é que, desta vez, a análise abarca o período da crise financeira que eclodiu a partir de 2008 – e que, numa primeira análise, não alterou os factores que fazem variar as remunerações dos grandes gestores de Portugal.

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Salário médio bruto atingiu o pico nos 550.620 euros em 2011, precisamente o ano em que o Governo de Portugal pediu ajuda externa Miguel Madeira/Arquivo

Em termos médios, os gestores das empresas cotadas na bolsa portuguesa saíram da crise melhor do que estavam antes: em 2016, ganharam em média 450.985 euros, mais 5,36% do que em 2008 (428.035 euros). Em termos médios, a remuneração dos gestores atingiu o pico nos 550.620 euros em 2011, precisamente o ano em que o Governo de Portugal pediu ajuda externa. Comparando este cenário com o dos trabalhadores por conta de outrem, vê-se que o ganho médio (isto é, a remuneração total) dos trabalhadores era de 1108 euros em 2016, mais 9,92% do que os 1008 euros em 2008.

Mas há uma grande variação – os CEO da Grão Pará e da Estoril Sol não tiveram salário pago pelas respectivas sociedades entre 2014 e 2016, ao passo que os CEO da EDP e da Jerónimo Martins, por exemplo, ganharam sempre acima de um milhão de euros anuais. Por isso, convém olhar para a mediana, para evitar o impacto dos valores extremos sobre a média, e aí verifica-se que em 2016 a remuneração mediana era de 299.687 euros, menos 11,38% do que a de 2008, que se situava em 338.169 euros.

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Risco não é premiado

Como se explica que os gestores das cotadas tenham recebido, em média, mais salário nos anos em que Portugal atravessou um profundo período de austeridade? Uma das razões pode ser o diferimento da remuneração variável (em dinheiro ou sob a forma de stock options), indexada a objectivos do negócio, e que é paga anos mais tarde, seguindo aliás as recomendações das entidades reguladoras. O orientador desta tese, Jorge Farinha, diz ao PÚBLICO que esta é uma boa prática seguida por algumas empresas (como a EDP ou a Sonae), mas lamenta que ainda haja quem não siga esta lógica, que permite perceber se a gestão por objectivos é sustentável ou se as metas são obtidas numa lógica de curto prazo.

Outra conclusão deste trabalho é que à medida que a remuneração do CEO aumenta, o risco da empresa diminui. "Seria de esperar que as empresas que apostam em projectos de maior risco remunerassem melhor os gestores. Mas baseado neste estudo, conclui-se precisamente o contrário", salienta a autora.

A ideia de que a remuneração deve estar ligada ao desempenho da empresa não é consensual. Mas desde a década de 70, quando se formulou a teoria da agência, que no mundo empresarial se admite e pratica essa ligação. Segundo essa teoria, um adequado esquema remuneratório deve mitigar os conflitos de agência que ocorrem quando o gestor (o agente) tem mais informação do que o accionista e utiliza essa assimetria para favorecer os interesses dele (por exemplo, manter ou aumentar o poder) e não o dos accionistas, que em princípio procuram a maximização do valor da empresa.

Joana Real analisa o caso português na perspectiva desta teoria, seguindo as pisadas de estudos feitos por Nuno Fernandes (2005), actual dean da escola de negócios da Católica em Lisboae por Raquel Pereira do Nascimento (2007), também da FEP. 

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A autora nota que depois de 2010, a qualidade da informação melhorou, mas entre 2008 e 2010, a informação ainda era apresentada de forma pouco clara Miguel Manso/Arquivo

Fernandes já tinha demonstrado que a dimensão da empresa é um dos factores que influenciam a remuneração, em especial nas empresas do sector financeiro – que não foi objecto de estudo da tese mais recente, que excluiu também todas Sociedades Anónimas Desportivas cotadas na Euronext, bem como todas as empresas para as quais não foi possível reunir os dados.

Este é, aliás, um dos problemas para quem quer fazer escrutínio em Portugal. Apesar de as empresas cotadas estarem obrigadas por lei a apresentar contas transparentes, não é fácil obter uma imagem global ou sectorial, porque como salientou um dos membros do júri da FEP, não existe uma base de dados centralizada nem fontes alternativas.

Daí que outro dos contributos relevantes desta tese tenha sido a de compilar informação financeira de uma vasta amostra de empresas cotadas, esmiuçando os dados de cerca de 400 relatórios anuais. A autora nota que depois de 2010, a qualidade da informação melhorou, mas entre 2008 e 2010, a informação ainda era apresentada de forma pouco clara, "porque as empresas entendiam que individualizar as remunerações dos CEO não tornava a imagem contabilística da empresa mais fiel e verdadeira, podendo violar a privacidade do executivo".

Rigidez salarial e falta de independência

Os estudos de 2005, 2007 e 2018 acabam por se complementar, em termos de horizonte temporal. E contribuem com diferentes perspectivas para o debate das remunerações dos grandes gestores que, em termos políticos, se centra na questão se deve haver limites e nunca ou quase nunca toca a questão de quais são as regras. Daí a importância destes estudos científicos, realça Jorge Farinha, porque em termos de sistemas de incentivos, Portugal ainda está na idade da pedra". "Existem situações em que o poder dos gestores é tão grande, ou tão pouco escrutinado, que estes acabam frequentemente por ter remunerações que estão desfasadas do verdadeiro desempenho da empresa".

O problema, que não é só português, refere o orientador das teses de 2007 e 2018, é que "os esquemas remuneratórios estão muitas vezes virados para o curto prazo, em que se atinge um conjunto de objectivos que nada têm a ver com a sustentabilidade da empresa ou a rentabilidade de longo prazo". 

No trabalho de 2005, Fernandes, quer era docente de Finanças no IMD antes de assumir a liderança da escola de negócios da Católica, conclui que "os gestores não são compensados por gerirem empresas de maior risco, o que é natural, já que eles também não são compensados (ou penalizados) pelo bom (ou mau) retorno para os accionistas. Mais interessante ainda, nem a compensação variável, que representa uma parte substancial da remuneração total, está relacionada com a performance (...). Na prática, estes resultados sugerem que a remuneração variável é bastante rígida e, de facto, não muito variável".

Mais grave ainda, era a conclusão de que a presença de administradores não-executivos não tinha o impacto esperado, porque estes pouco exerciam o poder de controlo e acompanhamento dos executivos. "Os resultados na verdade sugerem que poucas são as empresas portuguesas que realmente têm administradores independentes, que cuidam dos interesses dos accionistas", escreveu. Um exemplo disso mesmo, o silêncio de administradores-não executivos como Godinho de Matos na derrocada do BES, que viria a ocorrer anos mais tarde. E falhas semelhantes terão ocorrido na queda da PT.

O mesmo concluiria Raquel Nascimento, em 2007, cuja tese dizia que os não-executivos "não actuam como um mecanismo disciplinador da conduta dos gestores". Como a dimensão da empresa parece ser mais relevante na determinação do salário, os gestores poderão "enveredar por projectos de aumento da dimensão pela dimensão". Nascimento estudou o retorno das acções das empresas cujos gestores foram objecto de análise na tese dela, tendo concluído que "os gestores são remunerados pelo comportamento geral do mercado, o que pode permitir comportamentos free-rider [parasitas]".

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