A Habitação no Orçamento – o parente pobre

A pergunta que anda hoje na boca dos inquilinos é esta: já recebeste a carta?

Mais uma senhora de 84 anos acaba de receber uma carta do Fundo Apolo, que comprou os prédios da Fidelidade, para ir para a rua em Maio do ano que vem. Não pode ser despejada até Março, porque há uma moratória que lhe dá protecção legal até lá. Mas estes fundos abutres não querem saber disso para nada. Nem sequer pagam impostos sobre o que compram e vendem. E vão mandando as cartas de aviso que deixam as pessoas na maior das ansiedades.

A pergunta que anda hoje na boca dos inquilinos é esta: já recebeste a carta? De acordo com a lei das rendas de Assunção Cristas, os contratos antigos de duração indeterminada passaram a termo certo, excepto para inquilinos idosos que se opusessem. E podem não ser renovados pelos senhorios, sem justificação nem indemnização. Muitos idosos não perceberam, quando receberam a primeira carta, que o seu contrato ia ser alterado e passar a ter um prazo. Não responderam ou não se opuseram. A “carta” agora é a notificaçãozinha, pelo senhorio, de que pretende cessar o contrato no fim do prazo, ou renová-lo com uma renda muito superior. Não se trata sequer de um “despejo”, em termos rigorosos. É apenas um aviso de fim do contrato. Quem fica sem casa não tem remédio senão sair. É este o resultado da "lei Cristas" para a generalidade dos inquilinos: ansiedade e precariedade.

A liberalização das rendas de 2012, com o fim dos contratos de duração indeterminada e o encurtamento do prazo mínimo, devia, segundo anunciado, incentivar o arrendamento. A realidade mostra o contrário: a lei está a contribuir para a escassez de oferta e consequente aumento dos preços muito acima do aumento dos rendimentos. Para os proprietários há soluções mais rentáveis. Muitos até preferem ter as casas fechadas enquanto esperam que o mercado continue a aquecer. Em 2011, só em Lisboa, havia mais de 50 mil fogos devolutos. Alguns foram recuperados para alojamento local, mas o grosso continua vazio. São as casas-banco, transaccionadas com mais-valias de milhões, livres de impostos se se tratar de fundos imobiliários.

O drama, no meio disto tudo, é que as tentativas de alívio fiscal no arrendamento não passaram ainda na AR e a regulação do mercado de arrendamento em termos razoáveis, já praticada noutros países europeus, como a Alemanha, também está a marcar passo. A AR ainda não assumiu a prioridade que a habitação representa para grande parte dos inquilinos, a braços com a ansiedade da “carta” que já chegou ou vai chegar. Quanto aos jovens, proclamações há muitas, mas resultados nem por isso. Em 2019, a previsão do OE para o programa Porta 65 Jovem, que subsidia o arrendamento jovem, mantém-se nos mesmos 18 milhões de euros do ano passado, mas para juros bonificados para comprar casa há 39 milhões de euros, mais do dobro. Decididamente, política fiscal e política de habitação continuam a não rimar.

Falta confiança no arrendamento: dos proprietários, traumatizados por décadas de rendas congeladas; dos inquilinos, a braços com o novo trauma da precariedade. A “política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar”, prevista no artigo 65.º da Constituição, não existe.

Falta uma lei de bases da habitação para regular tudo isto de forma integrada. O projecto do PS que apresentei em Abril aguarda agendamento, veremos quando. Entretanto, continuam a engrossar as estatísticas de proprietários (mais de 75% dos portugueses), muitos deles à força porque precisam mesmo de casa. Metade daquela percentagem, aliás, é e será durante muitos anos de “inquilinos da banca”. Se e quando os juros subirem, vão passar um susto. Até lá, em matéria de habitação, este país não é para velhos nem para jovens. É triste que o último Orçamento do Estado deste governo continue a tratar a habitação como o parente pobre das políticas públicas.

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