“Brexit”: Paragem obrigatória em Bruxelas antes do salto no escuro em Londres

Theresa May reúne-se este domingo com os 27 chefes de Estado e Governo da UE para ratificar o acordo de saída do Reino Unido. Mas no regresso a casa, o que a espera é uma votação imprevisível na Câmara dos Comuns que pode deitar tudo a perder.

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Theresa May: o conselho europeu pode ser o seu último momento de descontração ANDY RAIN/EPA

Finalmente, passados 17 meses de negociações, adiamentos e confusões, chegou o momento da União Europeia e do Reino Unido formalizarem o seu divórcio. Fazem-no com a assinatura de um complexo tratado jurídico de 585 páginas que fixa os termos da saída e uma declaração política que lança as bases do seu relacionamento futuro, após o “Brexit”.

“Ninguém tem razões para estar feliz. Mas pelo menos, neste momento crítico, os 27 Estados-membros da União Europeia passaram no teste da unidade e solidariedade”, escreveu o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, na carta de convite enviada aos líderes europeus, em que aponta a “recomendação” para que dêem o seu aval político aos resultados das negociações.

Acossada em Londres pela defesa intransigente do acordo para a saída do Reino Unido da UE, Theresa May não se desvia um milímetro do guião traçado para o divórcio, agendado para 29 de Março de 2019. O barulho ensurdecedor em Westminster não a impede de se sentar este domingo à mesa com os restantes 27 chefes de Estado e governo europeus, em Bruxelas, para ratificar os textos desses dois documentos.

O momento é solene e histórico, e não foram poucos os que duvidaram que viesse a acontecer sob a sua liderança. Mas como também escreveu ontem Donald Tusk, no Twitter, “friends will be friends, right till the end”, citando os Queen.

Porém, a “vitória” de May este domingo pode tornar-se numa mera nota de rodapé no atribulado processo do “Brexit”, se o acordo de saída não for apoiado pelo Parlamento em Londres, daqui a três semanas.

Gibraltar arrumado

Ensombrado até à última hora pela indefinição em torno do estatuto do território britânico ultramarino de Gibraltar, cuja soberania é disputada pela Espanha, o Conselho Europeu deverá decorrer sem sobressaltos: após contactos diplomáticos intensos, que envolveram o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, Donald Tusk, e o presidente do Governo espanhol, Pedro Sánchez, foi encontrada uma fórmula “construtiva e sensível” para resolver o diferendo.

“A nossa posição sobre a soberania de Gibraltar não mudou, nem mudará”, assegurou May no sábado, após uma reunião com Juncker. “Assegurámos que [as negociações sobre] o estatuto de Gibraltar estão abrangidas pelo acordo de saída.”

“A Europa e o Reino Unido aceitaram as exigências de Espanha”, afirmou, por seu lado, Pedro Sánchez, que ameaçara boicotar a cimeira se não tivesse garantias jurídicas de que, após o “Brexit”, todas as decisões sobre Gibraltar terão de passar por Madrid.

Para tal, serão acrescentadas duas declarações à acta do Conselho Europeu deste domingo, que precisam que Gibraltar fica de fora de qualquer acordo a ser assinado entre a UE e o Reino Unido no futuro, e que a Espanha terá sempre o direito de veto em negociações entre os dois blocos sobre aquele território.

Com isto, os líderes deixaram intocados os rascunhos do acordo de saída e da declaração política para a relação após o “Brexit” que tanto custaram a negociar.

Campo de batalha 

A divulgação desses dois documentos transformou o Reino Unido num campo de batalha nas últimas duas semanas. De um lado, May e os seus (poucos) apoiantes deram o corpo às balas pelo desfecho das negociações com Bruxelas, fazendo dele depender a sua própria sobrevivência política. “Este é o acordo certo e cumpre a vontade do referendo. Restitui o controlo das nossas fronteiras, do nosso dinheiro e das nossas leis, e protege o emprego, a segurança e a integridade do Reino Unido”, assegurou a primeira-ministra, que diz mover-se apenas pelo “interesse nacional” e não por “políticas partidárias”.

Do outro ergueu-se uma frente imponente de oposição aos planos do executivo, que junta “brexiteers” e “remainers” conservadores, para além de trabalhistas, nacionalistas-escoceses, liberais-democratas e unionistas norte-irlandeses – que sustentam o Governo no Parlamento. Cada um à sua maneira, é certo, estão todos afinados a dizer basta ao “Brexit” de May e alinhados para chumbar o acordo de saída em meados de Dezembro.

Entre os opositores, destacam-se os membros da ala eurocéptica dos conservadores e os deputados do Partido Unionista Democrático, da Irlanda do Norte, ambos fundamentais para a sobrevivência do executivo liderado por Theresa May.

Os primeiros – que incluem os ex-ministros Boris Johnson, David Davis e Dominic Raab – olham para o acordo como uma capitulação de May a Bruxelas e rejeitam as garantias da primeira-ministra de que, após o “Brexit”, o Reino Unido terá uma política comercial independente ou que conseguirá pôr fim à livre circulação de pessoas entre o país e a UE.

A ruptura com May chegou a um ponto tal que está em curso uma iniciativa para lançar uma moção de desconfiança à líder do partido e que pode vir a ser uma realidade se 48 deputados oficializarem, por carta, essa intenção.

Aos segundos interessa-lhes o que merece o desprezo dos primeiros: o afamado “backstop”, isto é a solução de recurso para garantir que não será reposta a fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, um dos princípios fundamentais do divórcio.

Dramas de fronteira

Essa cláusula de garantia – acertada entre Theresa May e o negociador europeu, Michel Barnier, e inserida no tratado jurídico – implica a constituição de uma nova área aduaneira comum entre o Reino Unido e a UE e o alinhamento total da Irlanda do Norte com as regras do mercado único.

Contudo, essa solução só será aplicada se os dois blocos não forem capazes de fechar um “ambicioso” acordo de parceria e cooperação económica (um tratado de livre comércio) até ao fim do período de transição, em Dezembro de 2020 (extensível até ao fim de 2022), ou não encontrarem uma solução tecnológica para evitar a reposição da fronteira física entre Irlanda do Norte e República da Irlanda.

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Protesto ao pé do Parlamento, em Londres Henry Nicholls/REUTERS

Os unionistas de Belfast rejeitam esta disposição, por temerem que se desenhe uma nova fronteira em pleno mar da Irlanda, afastando-os do resto do Reino Unido. Para os “brexiteers”, este mecanismo tem o potencial para amarrar o país para sempre à burocracia europeia. “Temos de mandar o backstop para o lixo. Resultará num ‘Brexit’ totalmente absurdo”, implorou Boris Johnson.

Quanto ao Labour, está dividido entre os que apoiam um segundo referendo e os que querem apenas para fazer cair a primeira-ministra, para assumirem as negociações do “Brexit”. 

Face a tamanha contestação interna, esta cimeira é para May um autêntico respirar fundo antes do mergulho de cabeça para a incerteza. E com a primeira-ministra determinada em ir até ao fim com o ‘seu’ “Brexit”, desafiando os sinais de uma dolorosa derrota em Westminster, o tradicionalmente tenso Conselho Europeu pode ser o último sítio onde poderá descontrair. Trazer uma bandeira branca de Bruxelas de pouco lhe servirá em Londres.

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