As crónicas de dois bons malandros abrem o Porto/Post/Doc

A partir deste sábado, a quinta edição do festival está aí para falar das “ficções do real”. E começa com dois retratos cheios de música e sacanagem: Kaiser e O Chico Fininho.

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O Chico Fininho, uma pérola perdida do cinema português DR

Na canção de Rui Veloso que imortalizou em 1980 um “tipo”, o Chico Fininho vai “gingando pela rua ao som de Lou Reed”, ao mesmo tempo que, do outro lado do Atlântico, conta o narrador da história de Carlos Henrique Raposo, dito Kaiser, o futebol brasileiro ia gingando num descomprometimento de “samba, sacanagem e mulher”. Contemporâneas mesmo que ignorando a existência uma da outra, as histórias do futebol brasileiro desses anos e dos mânfios portuenses da década de 80 cruzam-se no primeiro fim-de-semana do Porto/Post/Doc, o festival dos “cinemas do real” que arranca este sábado e se prolonga até 2 de Dezembro pelos espaços do Teatro Municipal Rivoli, do Passos Manuel e do Cinema Trindade.

Mas há muito de sério nas propostas do festival, que chega este ano à sua quinta edição – e bastaria para o comprovar a retrospectiva em grande ecrã da obra singular de António Reis e Margarida Cordeiro (dias 29, 30 e 1), acompanhada por uma exposição colectiva a correr em paralelo até dia 30 na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, com obras de Marta Mateus, Daniel Blaufuks ou André Cepeda, entre outros artistas. Ou o foco sobre as meditações mediáticas e experimentais do britânico Chris Petit (dias 26 a 1). Ou a chegada ao Porto de dois dos melhores documentários portugueses do ano, Terra Franca, de Leonor Teles (Rivoli, dia 30, às 14h30; e dia 1, às 16h30), e Extinção, de Salomé Lamas (Passos Manuel, dia 1, às 19h). Mas o arranque oficial – esta noite, às 21h45, no Trindade –? faz-se com humor e piscadelas de olho, através de uma história “contado-ninguém-acredita” que ecoa de maneira peculiar com um título mítico, mas pouco visto, do cinema português.

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Trás-os-Montes, uma das obras fundamentais da dupla António Reis e Margarida Cordeiro DR

Kaiser! The Greatest Footballer Never to Play Football, do britânico Louis Myles, podia ser uma “ópera do malandro” como Chico Buarque a definiu (por acaso em 1980). O título já diz tudo: Carlos Henrique Raposo, dito Kaiser, o maior futebolista brasileiro que, na verdade, não tocou na bola num único jogo e enganou meio mundo. À boleia de uma geração lendária do futebol brasileiro, inventou uma carreira que nunca existiu, saltando de clube em clube como um aldrabão assumido que – como o próprio diz às tantas – não queria sequer jogar.

Myles acredita na história? É aí que Kaiser soçobra um pouco. O filme avisa logo ao princípio que “alguns destes eventos são verdadeiros” e passa a primeira hora de projecção a puxar a corda de Kaiser para ver até onde ele vai – antes de, na meia hora final, deixar cair algumas das máscaras e revelar a verdade sobre o jogador que nunca o foi, e passar da história de alguém que criou uma ficção para alguém que quis fazer da ficção a sua realidade.

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Kaiser! The Greatest Football Player Never to Play Football, de Louis Myles DR

Mas a história é tão inacreditável, e tão brasileira, e tão fake news inofensivas avant la lettre, que não há como lhe resistir – é a “ginga” brasileira no seu melhor, a ressoar de maneira curiosa com o outro “malandro” do fim-de-semana, o Chico Fininho, cujo maior problema era “o ácido com muita estricnina”, o “freak da Cantareira” que em 1980 andava nas bocas de Portugal inteiro. E que surgia, no filme de Sério Fernandes – praticamente invisível desde uma breve estreia comercial em 1982 e passagens esporádicas na televisão (numa “versão curta” de 60 minutos, por oposição à hora e meia da estreia em sala) –, como um cromo de bota engraxada e blusão de cabedal, sempre a cravar cervejas entre garagens transformadas em salas de ensaios de bandas e noitadas em boîtes onde as drogas trocavam de mãos em casas de banho. É um “malandro” mais comezinho, mais à portuguesa – e menos “perigoso” no cinema do que a canção dava a entender.

O Chico Fininho é redescoberto pelo Porto/Post/Doc (em sessão única no Rivoli este domingo, às 19h30) como uma “ficção do real” intensamente local, um vislumbre do Porto há quase 40 anos. O êxito comercial da canção e do álbum que a incluía, Ar de Rock, ultrapassando todas as expectativas, deu o pontapé de saída para o “boom do rock português”, e, ao dar um corpo físico à personagem que se tornara no símbolo do fenómeno, Sério Fernandes (que vinha da publicidade e dos filmes institucionais e abandonaria a produção corrente para se tornar professor de cinema durante duas décadas) estava a aproveitar o embalo de um fenómeno mediático.

É por aí que O Chico Fininho funciona como “cápsula do tempo” de um momento da vida de uma cidade e de um país. É um filme de alguém com evidente cultura cinéfila a tentar fazer o equivalente em imagem do “boom do rock”, a tentar igualar no ecrã a frescura displicente e despachada dos filmes de exploitation baratuchos, sob o signo da correria pelo Louvre do Bando à Parte de Godard ou da celebração juvenil que Richard Lester fez dos Beatles em Os Quatro Cabeleiras do Após-Calipso. É esse lado de polaroid fugaz de um tempo que já não existe que faz O Chico Fininho atravessar incólume as décadas, com uma mistura de ingenuidade e desfaçatez – embora o seu actor principal, Vítor Norte, fosse alentejano e trintão, sem o intenso sotaque portuense que a canção de Veloso e Tê dava a entender.

À imagem de tantos outros aproveitamentos de moda, O Chico Fininho não tem realmente história. Não existia um argumento, apenas situações mais ou menos improvisadas pelos actores e pela equipa com um ponto de partida definido: Luís Pereira de Sousa a percorrer o Porto, em busca do verdadeiro Chico Fininho, para lhe fazer uma entrevista. A partir daí, as imagens de Chico e dos seus amigos percorrendo a cidade são sequenciadas para dar entrada a actuações dos Táxi ou dos Cosméticos e a interlúdios musicais ao som dos Salada de Frutas, UHF ou Pizo Lizo.

Quando O Chico Fininho se estreou, à beira do Verão de 1982, o embalo perdera-se, o “boom do rock” estava já à beira do esgotamento, e as fragilidades de um filme que não podia existir fora do seu tempo não resistiram (como hoje não resistem) a um olhar mais atento. Mas o charme da cápsula do tempo mantém-se, e é por aí que se deve saudar esta redescoberta de uma “nota de rodapé” do cinema português que vai, precisamente, ao encontro do lema do Porto/Post/Doc: fazer ficção com a realidade. 

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