A hora do tudo ou nada no “Brexit”

A frágil mas resiliente liderança de Theresa May e o Acordo de 14/11, são provavelmente, a melhor (leia-se, a menos má) solução para britânicos e europeus.

1. Está a aproximar-se a hora do tudo ou nada no “Brexit”. A data de 29 de Março de 2019, onde ocorrerá automaticamente a saída britânica da União Europeia, caso nada seja feito que a impeça, está cada vez mais próxima. A 14 de Novembro último o governo do Reino Unido e a União Europeia chegaram, ao nível das equipas negociais, a um entendimento sobre os termos da saída britânica da União Europeia — o Acordo de 14/11. (Ver “Draft Agreement on the withdrawal of the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland from the European Union and the European Atomic Energy Community”). Para os que estão descontentes com o rumo dos acontecimentos, o espaço para a acção política é cada vez mais curto. Isso ocorre, desde logo, com os partidários da permanência na União Europeia (remainers), mas ocorre, também, com os partidários de uma saída “limpa” (os Brexiteers mais radicais), ou seja, sem qualquer acordo.

2. Como é normal numa negociação deste tipo, o texto do Acordo de 14/11 é longo e complexo. Está cheio de detalhes técnico-jurídicos sendo uma leitura difícil na assimilação plena das suas implicações para ambas as partes. O texto principal envolve 300 páginas (Parte I - Disposições Comuns; Parte II - Os Direitos dos Cidadãos, europeus e britânicos; Parte III - Disposições de Separação; Parte IV - Transição; Parte V - Disposições Financeiras; Parte VI - Disposições Institucionais e Finais. Em seguida, as restantes 285 páginas do Acordo incluem três protocolos: o Protocolo sobre a Irlanda/Irlanda no Norte (os anexos 1 a 10 fazem parte integrante desse protocolo nos termos do artigo 21.º); O Protocolo relativo às áreas das Bases Soberanas do Reino Unido em Chipre; e o Protocolo sobre Gibraltar. O Acordo termina com um outro conjunto de 9 anexos sobre diversas matérias. Note-se que é fundamentalmente um entendimento sobre aspectos transitórios da relação entre ambas as partes. Pressupõe, assim, que decorram novas negociações para o estabelecimento de uma futura relação definitiva do Reino Unido com a União Europeia, a partir de 31 de Dezembro 2020 (isto, se tal prazo não for prorrogado por consenso entre ambas as partes, até 1 de Julho de 2020). Assim, transitoriamente, o Reino Unido continuará estreitamente ligado à união aduaneira e ao mercado interno da União Europeia, embora sem participar nos processos decisórios desta após 29 de Março de 2019, pois deixará de ser membro nessa altura.

3. A situação política no Reino Unido é conturbada. Na semana onde foi anunciado o Acordo de 14/11, envolvendo os termos em que decorrerá a saída britânica da União Europeia, vários ministros entre os quais, Dominic Raab, que chefiava a equipa negocial — o mesmo tinha já acontecido ao responsável anterior, David Davis —, abandonaram o governo em ruptura com Theresa May, devido a discordâncias com rumo das negociações. A questão da Irlanda do Norte tem-se mostrado uma das mais espinhosas. Aí, a ideia de manter a fronteira com a República da Irlanda aberta, sem quaisquer entraves fronteiriços, colide com a pretensão de voltar a ter um controlo pleno sobre a política aduaneira e comercial, algo que motivou muitos britânicos a votarem a favor da saída da União Europeia. Neste contexto, o governo de Theresa May é frágil. É algo que se acentuou em 2017, após terem convocado eleições legislativas antecipadas que levaram, ao contrário da expectativa de Theresa May, a que o Partido Conservador perdesse a maioria absoluta de deputados no parlamento. Ficou dependente de um pequeno partido unionista da Irlanda do Norte, o Democratic Unionist Party (DUP). Ao mesmo tempo, Theresa May enfrenta nos últimos meses uma forte contestação da ala mais radicalmente pró-“Brexit” do seu partido (como Boris Johnson e Jacob Rees-Mogg). Os seus membros vêem nela alguém demasiado soft com a União Europeia, alguém que faz demasiadas concessões em matérias de soberania nas negociações de saída.

4. Paradoxalmente, a fragilidade política de Theresa May pode ser também um trunfo importante. Esta tem mostrado uma enorme resiliência — surpreendente para muitos —, face às grandes dificuldades do processo negocial e à contestação em vários sectores da sociedade britânica, desde logo dentro do seu próprio partido, como já evidenciado. No caso da oposição, acontece que o Partido Trabalhista e o seu líder, Jeremy Corbyn, também estão numa situação política particularmente difícil quanto ao Brexit”. Desde logo, há uma divisão entre os que pretendem ficar na União Europeia (em princípio, a maioria do partido), e os que, de alguma forma, consideram preferível a saída, embora os motivos para isso possam ser muito diferentes das razões dos conservadores. Jeremy Corbyn não tem grande simpatia pela União Europeia. Tudo indica que vê até a saída como uma oportunidade para aumentar a sua margem de manobra interna, para prosseguir políticas económicas e sociais mais à esquerda, não constrangidas pelas regras mais liberais europeias. (Ver “Interview with Labour Leader Jeremy Corbyn ‘We Can't Stop Brexit’” in Spiegel Online International, 9/11/2018). Assim, mais do que não poder parar o “Brexit”, Jeremy Corbyn não tem é vontade política de o fazer. Importa notar que vários outros membros influentes do Partido Trabalhista, como o ex-Primeiro Ministro, Tony Blair (ver “Tony Blair urges MPs to vote down any Brexit deal and push for people’s vote” in Guardian, 4/11/2018), têm feito apelos no sentido de parar o processo de saída e fazer um novo referendo.

5. Até agora, entre os Estados-Membros da União Europeia, tem existido uma notável coesão em torno das negociações do “Brexit”. Todavia, com o texto do Acordo final já anunciado, começaram a surgir divergências de maior ou menor relevo. (Ver “Las reticencias de un grupo de países agitan la recta final del Brexit” in El País, 21/11/2018). No caso da Espanha é o problema de Gibraltar que levanta oposição ao Acordo de 14/11, mais concretamente do do artigo 184.º que dispõe sobre as negociações sobre a futura relação entre o Reino Unido e a União Europeia. O governo espanhol entende que não ficou claramente explícito, no texto desse artigo, que o futuro estatuto de Gibraltar dependerá sempre de uma negociação directa entre o Reino Unido e a Espanha. (Ou seja, na prática, que o governo espanhol terá sempre a última palavra nessa questão e não a União Europeia). Um outro aspecto que levantou contestação de vários Estados-Membros como a França, a Holanda e também a Espanha, é a questão do acesso à zona territorial marítima britânica para efeitos de pescas, após a sua saída da União Europeia. Essa possibilidade não ficou prevista no Acordo de 14/11, por oposição britânica. Há, assim, sinais que a unidade europeia em torno das negociações pode desaparecer, dando lugar a soluções bilaterais se o Acordo de 14/11 não for assinado e aprovado por ambas as partes. Sintomático é caso da Holanda, um dos países mais ligados economicamente ao Reino Unido. Já tem um plano de contingência bastante elaborado aprovado, para poder lidar com essa eventualidade. (Ver “This is how the Netherlands could save Britain from the pain of Brexit” in The Independent, 21/11/2019). Abrange, por exemplo, áreas como o reconhecimento das qualificações profissionais e as licenças de condução britânicas, a segurança social incluindo acordos sobre cuidados de saúde para os cidadãos, e as ligações energéticas partilhadas. Mas tudo isto numa lógica bilateral que ultrapassa a União Europeia.

6. Chegou a hora do tudo ao nada no “Brexit” — uma saída sem acordo, ou uma reversão total do processo, permanecendo o Reino Unido na União Europeia. Mas os britânicos que se opõem ao Acordo de 14/11, ainda que por razões diametralmente opostas, como ocorre com os remainers e os Brexiteers mais radicais, incorrem, também, em riscos muito elevados se este não for aprovado. Ao não aprová-lo podem estar a abrir caminho ao que mais receiam: a saída sem qualquer acordo (o cenário de pesadelo para os remainers); e a reversão do processo saída com permanência na União Europeia (o cenário de pesadelo para os Brexiteers). Ao mesmo tempo, também do lado da União Europeia, há riscos elevados. Isto é sobretudo evidente se os Estados-Membros criarem obstáculos significativos à aprovação do Acordo de 14/11, tal como foi negociado, pretendendo incluir outras exigências neste. Desde logo isso irá alimentar, do lado britânico a dinâmica de uma rejeição do Acordo, fortalecendo os Brexiteers mais radicais e a sua possível chegada ao governo, substituído Theresa May por um dos seus. Se os desenvolvimentos forem por aí, a União Europeia poderá começar a abrir brechas e a equipa negocial chefiada por Michel Barnier tenderá a ser contornada pelos interesses nacionais dos Estados-Membros. Cada um, por si, procurará encontrar convenientes soluções bilaterais com os britânicos. Assim, paradoxalmente, apesar da contestação e das suas imperfeições, neste quadro extraordinariamente complexo da política europeia e britânica, que inclui grandes riscos para ambos os lados, a frágil mas resiliente liderança de Theresa May e o Acordo de 14/11, são provavelmente, a melhor (leia-se, a menos má) solução para britânicos e europeus. Veremos o que Conselho Europeu do próximo 25/11, bem como a batalha épica que depois decorrerá no parlamento britânico para a sua aprovação, apontarão nesse sentido.

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