Das Flores à Formosa: a segunda vida do alfarrabista despejado

Até dia 28 de Fevereiro, João Soares tem de empacotar os milhares de livros que há 21 anos acumula na Rua das Flores. A mudança magoa. Mas desistir não é opção. Alfarrabista vai abrir na Rua Formosa.

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João Soares tem um alfarrabista na Rua das Flores há 21 anos Paulo Pimenta

Passa das cinco da tarde, a noite começa a cair na Rua das Flores, e João Soares faz as contas ao negócio. Até àquela hora tinha vendido apenas cinco livros. Um dia normal na vida de um alfarrabista a moldar-se a um negócio em crise na artéria portuense que os turistas adoram. Não será por eles que Soares terá saudades da sua “casa” quando, a 28 de Fevereiro, fechar definitivamente a porta número 40 da sua livraria. Depois de um aviso de cessação do contrato feito há coisa de um ano, o alfarrabista vai mesmo abandonar a rua onde tem loja há 21 anos. Mas não desistirá do negócio: em Março – ou antes, se as mudanças acelerarem –, estará no número 231 da Rua Formosa.

A saga para encontrar um novo espaço no Porto foi longa. João Soares deu de caras com um mercado em estado catatónico, onde descobrir rendas com menos do que quatro dígitos é quase um achado. Na Rua das Flores, diz, o metro quadrado ronda os 70 euros. Noutras zonas apetecíveis para o comércio, está igualmente caro. Até ao aviso de que o prédio seria vendido, tinha um contrato com renda de 85 euros. Por estes dias, paga 750 (e chegou a pagar 850), o mesmo valor que terá de reembolsar na nova casa.

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Alfarrabista tem de sair da Rua das Flores até 28 de Fevereiro Paulo Pimenta

No negócio dos livros, João Soares estima vender hoje “metade do que vendia há dois anos”. E se reconhece nisso uma consequência dos deficitários hábitos de leitura dos portugueses e da concorrência da Internet, a metamorfose da cidade também não pode ser esquecida. “Nesta rua, deve haver uns 20 moradores fixos neste momento”, lamenta. “A clientela já não vem para aqui...”. E as enchentes de turismo na rua pedonal, transformada em abrigo de andaimes e materiais de construção, tantos são os edifícios a reabilitar, pouco ajudam: “Os turistas compram postais e tiram fotografias sem pedir autorização. Comprar livros, nem por isso...”

Na Rua Formosa, o alfarrabista de 73 anos terá uma loja de tamanho semelhante, mas sem armazém. Esse imbróglio está ainda por resolver: “Falta arrendar um outro local para guardar os livros”, diz, “uns cinco ou seis mil”, contas feitas por baixo. Na artéria junto à Rua de Santa Catarina, Soares terá concorrência – a Livraria Lumière, a cafetaria com livros Alambique, o alfarrabista Manuel Ferreira – e isso é factor de ânimo para ele.

Não foi longe dali que o pai o apresentou um dia aos livros, no Centro Literário Marinho, na Rua de Fernandes Tomás. João Soares teria uns dez anos e nunca mais perdeu o encanto. Morador no Bonfim e estudante no Liceu de Alexandre Herculano, passava horas infindas na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Pelos 14 anos, já tinha lido metade da obra de Júlio Verne.

O seu primeiro emprego foi numa papelaria na Praça da Batalha, mas foi como bancário, no Banco de Angola, que fez carreira profissional por mais de 30 anos. Sempre com o coração nos livros. “Quando era mais novo, dividia os meus dias em três partes: manhãs, tardes e noites”, conta, sorridente: “Fumava um maço de tabaco por cada parte. Só não fumava a dormir e a ler”. A primeira vez que se pôs a vender foi na feira de Vandoma, recorda: “Estiquei um pano no chão e pus os livros.” Ganhou o gosto. Não parou mais.

Não há palavras capazes de explicar a resistência neste ofício que “não se ensina mas se aprende todos os dias”. João Soares brinca: “É uma pancada que tenho. Não gosto de futebol, não sei jogar cartas, sou um reformado bancário. Ia fazer o quê?”. Do número 40 da Rua das Flores, sairá dentro de dias a última moradora do prédio comprado por investidor chinês. João Soares ficará mais uns meses no rés-do-chão, conformado com o entra-e-sai de gente a analisar a área e a cogitar o futuro da loja. Provavelmente mais um “comes e bebes”, a juntar aos muitos existentes na zona. “É uma tristeza profunda”, deixa sair em surdina, mas não é o fim da história. “Não penso parar. Só mudo de casa...”

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