As coisas novas que se descobrem nos Madeira velhos

É um vinho de nicho que está a reinventar-se. O Madeira renovou a imagem, sofisticou-se nos rótulos e abriu novos caminhos, mas são as velhas garrafas, e o que elas guardam, que continuam a dar-lhe nome.

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Gregório Cunha
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É nos vinhos velhos que se aprendem coisas novas. Francisco Albuquerque está sentando à entrada do 1811 Bistro & Wine Bar. O restaurante, simpático, é uma das portas de entrada do Blandys Wine Lodge, ali bem no centro do Funchal, onde a Madeira Wine Company fez sala de visitas, loja, museu e abriu espaço para a colecção privada de vinhos centenários da família Blandy, que controla a empresa.

É nos vinhos velhos que se aprendem coisas novas. Francisco Albuquerque repete a frase, que recupera de uma dedicatória do avô escrita no livro O vinho: Sua preparação e conservação. Ainda guarda esse livro, de Octávio Pato. Tinha 17 anos quando o recebeu, e quando lhe perguntam como aconteceu essa coisa de ser enólogo – e perguntam muitas vezes –, gosta de regressar a ele para responder.

“Cresci com os meus avós. O meu avô era um grande produtor de uvas que vendia depois à Casa Borges [HM Borges], e eu andava sempre por ali, pelo campo, entre as uvas”, recorda, contando que durante as longas férias de Verão regressava mais cedo do Porto Santo, onde a família descansava todos os anos, para acompanhar as vindimas.

Fez-se primeiro engenheiro agrónomo – “não havia essas coisas de enólogo, na altura” – e até foi no mar, trabalhando como engenheiro naval, que encontrou o primeiro trabalho, mas, embora regresse sempre ao mar (o mergulho é paixão antiga que cultiva), foi entre os socalcos escavados nas encostas madeirenses e nas adegas poeirentas que se encontrou.

Actualmente, Francisco Albuquerque é, juntamente com outros nomes como o de Juan Teixeira (Justino’s Madeira) ou de Ricardo Diogo (Vinhos Barbeito), responsável pela nova vida que o Madeira tem tido.

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Juan Teixeira, da Justino's Madeira Gregório Cunha

“Estamos a trabalhar vinhos que alguém nos deixou, para alguém que virá a seguir.” A voz agora é de Juan Teixeira, sentado à cabeceira da mesa comprida na sala de provas da Justino’s. Quando chegou à empresa, vai fazer agora 20 anos, encontrou as adegas praticamente vazias de história. Isto apesar de a companhia recuar a 1870 e, pelo caminho, ter adquirido outras bem mais antigas, como a Companhia Vinícola da Madeira, que é das primeiras do arquipélago. Por isso, depois de arrumar a casa, tratou logo de ir à procura dos vinhos que foram fugindo da empresa ao longo dos anos. O mais importante que encontrou foi um Terrantez de 1795, que está agora em lugar de destaque na sede da empresa.

“A riqueza de uma companhia mede-se pelo seu património vínico”, sublinha, para reforçar o esforço que a Justinos’s tem feito para preservar essa riqueza e aumentá-la, sempre que surge a oportunidade. Assim, é difícil encontrar vinhos muito antigos nos catálogos da empresa. “Os que existem são para preservar e fazer um brilharete, quando é preciso. Não são para vender.”

A mesma filosofia na Madeira Wine Company. Longe vão os tempos em que Francisco Albuquerque levava uma ou duas garrafas da adega do avô para beber com os amigos na passagem de ano. “Escolhíamos um vinho de mil oitocentos e tal, e lá íamos nós para a festa”, ri-se, enquanto roda a chave grossa na fechadura do gradeamento de ferro que dá para um pátio interior do Blandys Wine Lodge. Do outro lado da porta, esconde-se a colecção privada da família Blandy, que se estabeleceu na Madeira há mais de dois séculos. São vinhos que acompanham esse percurso, encontrando-se rótulos dos séculos XVIII e XIX, e outros mais recentes do início do século passado, dispostos ao longo de um corredor estreito, ladeado por armários. Tudo trancado atrás de uma pesada porta de ferro. O cofre-forte da família.

Para lá chegar, é preciso primeiro atravessar a sala frasqueira, onde reinam os vinhos datados mais antigos da empresa, como o Blandy's Bual 1920. Depois, nova porta a dar para uma sala mais pequena, a guardar uma dezena de garrafões de 60 litros. Iguais aos demi john’s que foram descobertos recentemente atrás de uma parede falsa, na adega de uma antiga casa senhorial norte-americana, para fintar a Lei Seca. Foram 42 garrafões e meia centena de garrafas de Madeira do século XVIII que estavam escondidos no Liberty Hall Museum, em Nova Jérsia, Estados Unidos.

Experiências para viver

Francisco Albuquerque foi chamado pela Christie’s para validar a colecção, a mais antiga de vinho Madeira nos Estados Unidos, que vai agora leiloar parte desse espólio no próximo dia 7 de Dezembro. O catálogo do leilão tem na capa a fotografia de um Madeira engarrafado em 1798 por Robert Lenox, um importante comerciante de vinhos daquela altura que importava barris de Madeira, engarrafando-os em Filadélfia.

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Francisco Albuquerque, Madeira Wine Company Gregório Cunha

Vão vinte destas garrafas a leilão, com a Christie’s a estimar a venda, de cada uma, entre os seis e os oito mil dólares (pouco mais de sete mil euros). Também vão garrafões de 18 litros, e aqui o preço situa-se entre os 35 e os 55 mil dólares (mais de 48 mil euros) para um lote de Sercial datado de 1846. Mas a estrela maior do dia será um Barbeito Terrantez 1795 que pode atingir valores entre os sete e os 10 mil dólares (8,7 mil euros). Pertenceu à colecção privada de Robert Maliner, cirurgião plástico de Miami e conhecido especialista de Madeira nos Estados Unidos, e vão duas garrafas a leilão.

Na Madeira Wine Company gostariam de deitar a mão a uma delas. As maiores colecções estão fora da ilha, desabafa Francisco Albuquerque. Inglaterra e Estados Unidos têm sido os destinos dos Madeira mais raros. “Existem famílias madeirenses com importantes colecções e é bom que assim permaneça, mas as crises económicas obrigaram muitas pessoas a vender”, lamenta. Há uns anos, o espólio de Frederico de Freitas, um filantropo madeirense, foi a leilão. Albuquerque desdobrou-se em contactos. Com o governo. Com particulares. Tudo para impedir que o vinho viajasse para fora do arquipélago. Não teve sucesso. “Ainda consegui comprar duas, mas o resto foi para fora.”

Na empresa, desde que é o enólogo da casa, são reservadas sempre 200 garrafas dos vinhos que vão sendo engarrafados. “O cash flow deste negócio é feito com os vinhos mais novos.” Assim, todos são muito criteriosos sobre o que é colocado no catálogo. À venda, neste ano, o mais antigo que a Madeira Wine Company tem é um Boal de 1948. Um século mais jovem do que o Verdelho de 1850 que a Pereira d’Oliveiras tem nas estantes da loja no centro do Funchal.

A empresa, por uma série de coincidências e sucessões geracionais concordantes, tem-se mantido na família desde que foi fundada por João Pereira d’Oliveira, exactamente em 1850. O modelo de negócio – só em 1986 é que começaram a exportar –, e a aquisição de outras companhias em dificuldades, contribuiu para que as adegas e armazéns da d’Oliveiras provoquem inveja às restantes casas de vinho Madeira.

“O nosso vinho mais antigo é uma colheita de 1822”, conta, orgulhoso, Luís d’Oliveira, apressando-se a acrescentar: “Não está à venda.” Mas estão outros. Muitos. Na sede da empresa, um antigo liceu jesuíta datado de 1619, onde a toda a hora se apinham turistas em excursão, misturam-se nas prateleiras vinhos de tantas idades.

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Luís d'Oliveira, da empresa Pereira d'Oliveira Gregório Cunha

É fácil espantar-se ao ver, por exemplo, um Sercial de 1999 ao lado de um pachorrento Moscatel de 1900. Ou um Boal de 1968 a dividir espaço com um já centenário Malvazia de 1875. “Este é o nosso património. É um incentivo e tem de ser bem gerido”, nota o patriarca da família, que tem repelido as investidas de leiloeiras, como Christie’s, fascinadas pela raridade dos vinhos da casa.

Todos os anos, em Abril, a Pereira d’Oliveira apresenta a selecção de vinhos para a época. A deste ano volta a impressionar. As sugestões começam em 2005 e vão descendo, quase sempre respeitando o andamento do calendário, até 1968. Saltam depois para os vinhos com mais de 80 anos e terminam com os centenários. Os preços, tendo em conta o que chegam a valer vinhos mais correntes, não impressionam.

Mil e trezentos euros por um Verdelho de 1850? “Uma bagatela”, atira Juan Teixeira. E explica. “Se fosse um vinho francês com essa idade, um château qualquer coisa (que muitas vezes nem château [castelo, em francês] tem) era vendido por uma fortuna”, diz o enólogo e administrador da Justino’s, considerando que o vinho Madeira é incomparável, mas precisa de melhor marketing. E precisa, principalmente, de ser bebido. “O Madeira é muito famoso, mas ainda é pouco conhecido”, diz.  

Independentemente da idade, acrescentaria Francisco Albuquerque, para quem os vinhos, novos e velhos, são para serem bebidos. “São experiências. E as experiências são para serem vividas, não para serem guardadas.”

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