PJ apreende pergaminho do século XIV que esteve à venda no OLX

Documento foi encontrado no site de vendas por 750 euros. A Torre do Tombo quis comprá-lo, mas o dono alegou que já o tinha vendido, contrariando a lei que dá ao Estado o direito de preferência. PJ abriu inquérito.

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O pergaminho em questão data de 1383 DR
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O Castelo de São Jorge, em Lisboa NUNO FERREIRA SANTOS

A Polícia Judiciária (PJ) anunciou esta terça-feira ter apreendido no Porto o pergaminho da entrega do Castelo de Lisboa ao conde de Barcelos em 1383, que foi encontrado à venda no portal de vendas on-line OLX por 750 euros e que o Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) desejava adquirir, tal como confirmou ao PÚBLICO o seu director, Silvestre Lacerda, no início do mês. 

Foi de resto por denúncia da Torre do Tombo que a Directoria do Norte da PJ interveio. “Nós mandámos um email ao proprietário mal vimos que o pergaminho estava à venda no OLX, manifestando o nosso interesse em exercer o direito de opção”, explica agora Silvestre Lacerda, director do ANTT, acrescentando tratar-se de um “procedimento normal” sempre que o Estado quer comprar alguma obra de arte ou documento, seja em leilão, seja numa venda directa. O pergaminho em causa documenta uma ordem do Rei D. Fernando, dirigida ao Alcaide do Castelo de Lisboa, Martim Afonso Valente, para que este entregue a fortificação em seu nome e da Infanta D. Beatriz ao Conde de Barcelos, Dom João Afonso Telo – será um de três exemplares do documento lavrados à época.

A primeira mensagem que a Torre do Tombo enviou ao proprietário, um coleccionador de Gaia, por email – o único meio de contacto por ele disponibilizado naquela plataforma de comércio electrónico – tem a data de 20 de Outubro. Nela Rosa Azevedo, chefe de Divisão de Tratamento Técnico Documental e Aquisições da Torre do Tombo, fala numa “possível aquisição” e pede para ver o documento. Dez dias depois, o proprietário respondia laconicamente: “Informo que a peça em causa foi já vendida.”

Foi então que a PJ entrou em campo, precisa o comunicado enviado às redacções esta manhã: “Dada a importância e valor inestimável do documento, e lograda que foi a tentativa de compra por parte do Arquivo Nacional, esta instituição comunicou o seu eventual descaminho da legítima tutela do Estado, dando origem a investigação.”

Contactado pelo PÚBLICO, o coordenador de investigação criminal Pedro Silva, responsável pelo inquérito entretanto aberto, explica que a PJ foi informada no final de Outubro de que o Estado estava privado de exercer o direito de preferência na compra do pergaminho, como está garantido na lei, porque este já se encontrava vendido, e agiu de imediato. “Abrimos uma investigação para identificar o vendedor e depois entrámos em contacto com ele, dizendo-lhe que se tratava de um assunto de extrema importância e que precisávamos de saber onde estava o documento”, diz este coordenador da Secção de Investigação de Crimes contra o Património e Vida em Sociedade.

O proprietário, “um coleccionador de Gaia” cuja identidade a PJ para já não revela, “ofereceu alguma resistência de início”, alegando que o pergaminho tinha já sido transaccionado, mas depois acabou por aceder e “entregou-o voluntariamente” às autoridades esta segunda-feira, em sua casa.

O documento vai agora ser alvo de uma perícia para que se possa aferir se é ou não autêntico. O inquérito entretanto em curso deverá determinar, entre outras coisas, como é que um documento desta natureza foi parar às mãos de um privado. “Nesta fase ainda muito incipiente da investigação o que temos é um documento importante na posse de um particular, que o pôs à venda e que, entretanto, impediu o Estado de exercer o direito de opção de compra que a lei lhe garante”, acrescenta Pedro Silva. Se este é um negócio legítimo ou se tem por trás um crime de receptação de bens patrimoniais – ou, mais grave ainda, um furto – é o que a investigação vai tentar apurar.

Do Estado, por direito

Por que razão mudou o proprietário de ideias em relação à venda, Silvestre Lacerda não sabe. “Quando recebemos esta informação do dono, respondemos de imediato para lhe garantir que o Estado não abdicava da compra.”

No email que a Torre do Tombo lhe envia a 31 de Outubro, faz referência a dois decretos-lei para enquadrar a exigência com que a mensagem termina. O primeiro diz respeito à missão deste organismo afecto ao Ministério da Cultura ao qual está confiada boa parte dos tesouros documentais do país. O segundo, o n.º 16/93, determina o direito de preferência do Estado “na venda de um bem arquivístico classificado ou em vias de classificação, obrigando-se a satisfazer o preço e demais condições exigidas até dois meses após o exercício daquele direito”. A chefe de divisão Rosa Azevedo termina o email comunicando ao dono do pergaminho que a Torre do Tombo exerce o directo de preferência e pedindo-lhe que a contacte para “iniciar os procedimentos relativos ao pagamento do documento assim como à sua entrega”. E deixa ainda um aviso: “Em caso de tentativa de incumprimento do estipulado, agiremos de acordo com o previsto legalmente.”

Ainda que o pergaminho em causa não esteja “classificado ou em vias de classificação”, o direito de opção do Estado não sofre alterações porque, explica ao PÚBLICO o director do ANTT, a Lei 107/2001, que estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural, prevê a extensão desta medida de salvaguarda a todos os documentos com mais de 100 anos que sejam considerados relevantes.

Lacerda aguarda agora o resultado da peritagem ao documento, que deverá ser feita em breve pela própria Torre do Tombo, mas não espera que a operação traga surpresas: “Não tenho grandes dúvidas de que se trata de um documento autêntico. Está registado na chancelaria de D. Fernando.”

“Se o dono mudou de ideias [quanto a vender] já não faz diferença neste caso. A sua vontade não conta porque a dada altura ele decidiu pôr o documento à venda. Se assim não fosse o documento continuaria na esfera privada e o Estado não poderia fazer nada. A partir do momento em que ele chegou ao OLX o Estado pode intervir”, conclui o director do ANTT.

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