“O machismo é mais surpreendente no Saramago por causa da sua posição ideológica. Uma pessoa não está à espera disso.”

Rota de Vida é a primeira biografia de grande fôlego sobre a vida e a obra de José Saramago. Nada parece ter ficado de fora. Joaquim Vieira fez-lhe o retrato “a corpo inteiro”, aceitando o risco de ser inconveniente e incómodo para alguns.

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Luis Davilla/Getty Images

No ano em que se comemoram os 20 anos da atribuição do Nobel da literatura a José Saramago (1922-2010), publica-se Rota de Vida, uma extensa e detalhadíssima biografia, da autoria de Joaquim Vieira (n. 1951). É um “retrato a corpo inteiro” que traça um árduo percurso, o de um homem “levantado do chão” com as suas próprias forças: desde o nascimento numa aldeia ribatejana, numa família humilde de trabalhadores rurais, até à consagração pela Academia Sueca. Pelo meio vão surgindo os traços de teimosia da sua personalidade, essa vontade que o fez aprender como autodidacta frequentando durante décadas, à noite, a biblioteca do Palácio Galveias, em Lisboa, onde lia de tudo, da literatura à ciência.

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Depois do curso de serralheiro mecânico – profissão breve no tempo em que a exerceu – chegam os primeiros contactos com o mundo literário: frequenta uma tertúlia no Chiado onde aparecem nomes então conhecidos das letras. É nessa tertúlia que alguém lhe oferece um lugar no escritório de uma editora, abrindo-lhe a porta para um contacto mais estreito com nomes consagrados da literatura. Nesses contactos, nas cartas que escrevia a Jorge de Sena e a Rodrigues Miguéis, e como se pode perceber nesta biografia, não hesita nos jogos de intriga do meio literário, mostrando mesmo algum calculismo na vontade de se afirmar, de ser reconhecido, como escritor.

Já está, entretanto, muito ligado ao PCP e imbuído da ideologia marxista-leninista. No período pós-revolucionário é nomeado director-adjunto do Diário de Notícias (DN); num processo conturbado, é acusado de fazer censura e de afastar jornalistas; os traços de “autoritarismo” e inflexibilidade ideológica deixaram marcas no seu percurso público. Mas é no lado biográfico da sua vida privada que surgem algumas revelações neste livro, talvez inesperadas para alguns: o machismo na relação com as mulheres – a “multiplicidade de relações”, refere o biógrafo – e alguns avanços físicos não consentidos revelados agora por algumas mulheres. A “frieza afectiva” no trato familiar (com os pais, com a única filha e com os netos) é outro traço desta personalidade aparentemente tímida e por vezes ensimesmada; uma frieza de raiz ideológica, adianta o biógrafo.

Tendo conhecido pessoalmente José Saramago, qual foi a revelação que mais o surpreendeu ao longo deste trabalho?
Sendo a figura pública que foi, não apenas por o ter conhecido, mas por aquilo que se sabia dele, não posso dizer que tenha tido grandes surpresas. Surpreendeu-me a sua radicalidade política, que por vezes o fazia divergir do PCP pela esquerda, nisso se mantendo intransigente, e como em tudo o que tinha que ver com a ideologia. Outra surpresa veio do lado da sua vida privada. A multiplicidade de relações… direi que me surpreendeu um bocado. Mas pelos vistos era uma questão de geração. Biografei o Mário Soares e era a mesma coisa, biografei o Pinto Balsemão e foi a mesma coisa. Corresponde à atitude de uma certa geração. O machismo é mais surpreendente no Saramago por causa da sua posição ideológica. Uma pessoa não está à espera disso. Foi uma revelação.

Esse traço machista é notório em certas histórias. Aliás, um amigo do Saramago, Sérgio Ribeiro, citado por si, diz que ele “não era machão, era machista”…
Sim, perfeitamente notório, e ele encarava isso com grande naturalidade. Ele nem sequer questionava o seu comportamento. Mas esse meio intelectual, mesmo o de esquerda, era muito machista. O meio intelectual dos anos 1960, 1970, toda a gente era muito machista, à esquerda e à direita. A ideia da igualdade de género, dos direitos da mulher, isso só aparece mais tarde. Tudo isso fez o seu caminho muito lentamente. Durante muito tempo a esquerda não teve sequer um papel de vanguarda nisso.

Logo no começo da biografia, parece duvidar – e apresenta a devida justificação – do propósito de Saramago ter iniciado o discurso de aceitação do Nobel com uma homenagem ao avô Jerónimo. Ele nunca escondeu as origens e fez disso, por vezes, quase uma bandeira. Mas haveria nele uma amargura em relação a isto?
Havia sobretudo revolta, que teria mais a ver com o facto de não ter sido aceite facilmente no meio erudito, literário e académico, devido às suas origens. As pessoas desse meio marcavam-no por isso. Não tinham por ele o mesmo tipo de aceitação que teriam com outros. Ele sempre disse que tinha orgulho nas suas origens, eu respeito isso. Agora dizer que o avô, que era analfabeto, seria a pessoa mais sábia que ele conheceu… Acho que lhe fica bem naquele contexto, mas tendo o Saramago, já na altura, privado com muita gente por esse mundo fora, com tantos intelectuais ilustres, acho difícil aceitar essa ideia. E depois ao falar com a Pilar [del Río, viúva], numa das várias conversas que tive, ela acaba por me dizer isso também. Estávamos a discutir a questão da sanguinidade. O Saramago, a partir da altura em que se tornou comunista, passou a achar que as relações de sangue não tinham muita importância. O que era importante eram as amizades construídas num projecto comum entre as pessoas.

Uma ideia muito soviética…
Exactamente, a ideologia comunista tem muito a ver com isso. Os laços entre as pessoas não se constroem com base na família. O papel desta no comunismo original era depreciado. Foi nessa altura que falei à Pilar no discurso do Nobel, e ela disse: “mas isso é literatura, ele estava só a fazer literatura”. Isto conjugado com aquela frase que ele escreve, muitos anos antes, numa carta ao Rodrigues Miguéis, em que diz que tinha estado a pensar no avô e a fazer literatura, e acrescenta: “manha de literato, defeito de escriba”… É um escritor que ganha o Nobel, vai a Estocolmo recebê-lo, fazer um discurso – que é uma espécie de oração de sapiência. Ele tem que ter uma abertura forte para esse discurso. E vai buscar a sua circunstância, as suas raízes, o que tem a sua lógica. É inegável que tem uma relação fortíssima, sentimental, afectiva com o avô, e procura a abertura ideal.

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Depois do curso de serralheiro mecânico chegam os primeiros contactos com o mundo literário: um lugar no escritório de uma editora abre-lhe a porta para um contacto estreito com nomes consagrados da literatura rui gaudêncio

Por vezes, ao ler esta biografia, fiquei com a ideia de que Saramago era um homem desmesuradamente ambicioso. Mas noutras ocasiões já não me parecia tanto…
Curiosamente, o Saramago não me pareceu muito ambicioso. É uma coisa estranha. Aliás, ele tem aquela frase: “Aquilo que tiver de ser meu às mãos me há-de vir ter”. Não é alguém que tivesse planeado a sua carreira literária para chegar ao Nobel. A partir de certa altura convenceu-se de que realmente conseguia. Mas, se tivesse essa ambição teria começado a carreira de escritor de uma forma mais consistente, e mais cedo. Ele vai escrevendo umas coisas. Tem ambição de ser escritor, sem dúvida. Mas fica por ali a estagnar. E quando volta ao meio nem é ele sequer quem faz por isso: frequenta uma tertúlia no Chiado e é convidado para trabalhar numa editora. A partir daí começa a contactar com escritores que já eram consagrados, Jorge de Sena, Rodrigues Miguéis sobretudo. Pensa recomeçar a escrever e a tentar ganhar intimidade com essa gente. Quer subir na escala, no meio intelectual, literário, digamos assim. E depois há os tais sentimentos de não poder ser considerado como desejava. Quer ganhar a aprovação deles e envia-lhes poemas que escreve. Mas continua a não se notar ali grande ambição. Tudo aquilo é muito lento, estamos a falar de um homem que já vai a caminho dos 50 anos de idade.

Depois há aqueles jogos por carta com Jorge de Sena e com o Rodrigues Miguéis, em que desclassifica o crítico e escritor Gaspar Simões, a quem chamava amigo…
Há muito essa intriga do pequeno meio literário português. Achei isso fascinante e deu-me vontade de escrever um livro só sobre isso (risos).

Mas não há nisto um certo calculismo?
Isso é verdade. Mas para chegar onde? O Saramago não tinha um ponto definido. Não acredito que nessa altura ele tivesse a ambição de ser o grande escritor de língua portuguesa, que de certa forma revolucionou as coisas, até ao ponto de chegar ao Nobel, coisa considerada inalcançável em Portugal. Tinha a ambição de se afirmar mas não consigo perceber até que ponto. Começou na ficção, vai para a poesia, e depois retoma a ficção. Não há um plano, não há nada de detalhado, linear.

E entretanto vai perder-se também um pouco na política…
Embora mais tarde tenha dito que nunca quis ser político. Mas se tivesse uma ambição muito determinada de ser escritor, provavelmente nunca teria aceite o cargo de director-adjunto do DN. Se as suas ideias políticas tivessem triunfado em 1975, ele estaria calhado para um tipo de carreira diferente. Acho que só quando ficou desempregado é que começou seriamente a pensar em ser escritor. Quando tem aquela epifania de descobrir um estilo [durante a escrita do romance Levantado do Chão - 1980] que o distingue do resto do que se publica em Portugal, ele percebe que tem uma carreira à frente. Mas estamos a falar de um homem que tem 58 anos nessa altura. Com Memorial do Convento (1982) ou com O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), ele pode ter pensado que poderia chegar ao Nobel, e começa a consolidar-se essa ideia. Penso que a Isabel da Nóbrega [escritora, segunda mulher de José Saramago] lhe deve ter dito…

Há mesmo aquela história de ela ter o fraque do pai guardado para quando o Saramago ganhasse o Nobel…
Sim, acho aquilo muito curioso, e foi em 1984 ou 1985. A filha da Isabel da Nóbrega contou-me que, por vezes, quando se insurgia contra a mãe por ser esta a pagar as contas e o Saramago não trabalhar, ela lhe respondia que ele estava a escrever e que qualquer dia ganharia o Nobel.

Nos processos dos saneamentos no DN encontrou alguma história que o tivesse surpreendido?
O que várias das personagens que participaram nesse processo me disseram, e em quem acredito, é que o poder dele era tão grande dentro do DN, que tudo o que acontecia era porque ele queria. Bastava uma palavra dele, há várias pessoas que me referem isso… Apesar de ele ter passado o resto da vida a dizer que aquilo não era com ele, e que era com a comissão [de trabalhadores], com o plenário, etc. Saramago tinha uma influência determinante na forma de pensar das pessoas lá dentro, e era muito respeitado. Era ele quem escrevia os editoriais, não os assinava mas sabiam que era ele.

Era uma situação insólita ser director-adjunto e não ser director…
Luís Barros, que é dezanove anos mais novo do que o Saramago, talvez fosse o director por ter pertencido a um governo. Foi secretário de Estado, ou sub-secretário de Estado para a Comunicação Social. Mas não tinha nem a força nem a autoridade intelectual para que se pudesse impor dentro do jornal. Desde o início que o Saramago se sentiu investido da missão de ser o orientador ideológico, político. Só mais tarde é que Luís Barros mostrou algum incómodo com a situação. Acontecia no caso do Saramago uma certa teimosia, também ideológica, em aceitar que a realidade pode alterar as nossas ideias, que podemos estar enganados. E um certo fanatismo ideológico que tinha na altura. O facto que acho bastante significativo disto aconteceu no primeiro congresso do PCP a seguir ao 25 de Abril, no Pavilhão dos Desportos [actual Pavilhão Carlos Lopes]. O Cunhal, por uma questão de pragmatismo, quis retirar do programa a referência à “ditadura do proletariado”. Achava que era mau para a opinião pública, para o eleitorado – tínhamos acabado de sair de uma ditadura e aparece lá “ditadura do proletariado”, chavão do marxismo-leninismo. Entre várias centenas de delegados, o Saramago foi o único a votar contra essa alteração. É uma inflexibilidade ideológica que sempre o caracterizou.

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ENRIC VIVES-RUBIO

Depois do 25 de Novembro, depois de ter sido despedido do DN, é talvez o único que não vai trabalhar para O Diário porque o partido não o chama. Fica ressentido com o PCP mas não o abandona…
Ele dirá que é coerência ideológica, é o não recuar, o manter-se fiel sempre às mesmas ideias. Acho que teve a ver com isso.

Mas zanga-se com Álvaro Cunhal…
Exactamente. Porque foi o Cunhal quem o preteriu para a direcção do Diário. Ficou amargurado, e ao longo da vida, sobretudo mais para o fim, mostrou as amarguras mas sem nunca citar nomes, nem sequer se referia ao partido. Dizia “aqueles que a certa altura da minha vida tinham a obrigação de me apoiar e deixaram-me cair”. Ele escreve isso nos Cadernos de Lanzarote (1993-1998). Remoeu esse sentimento até ao fim. Mas isso teve um reverso: foi por causa disso que se tornou escritor. No fundo deveria ter ficado agradecido ao Cunhal por o ter abandonado (risos).

Fica desempregado e vai passar uns tempos para uma UCP [Unidade Colectiva de Produção] no Lavre. Dois anos depois escreve Levantado do Chão. Mais uma vez não abandona a ideologia, e inicia uma obra cheia de mensagens políticas, como notou uns anos depois a professora Maria Lúcia Lepecki. Saramago disse que escrevia “um realismo inquietante” mas há quem defenda que esse livro é puro “realismo socialista"…
Isso é verdade. O Levantado do Chão é tributário do neo-realismo – na ditadura não se podia falar de socialismo e então inventaram essa palavra – com excepção do estilo, que é diferente. Era um romance que correspondia aos ideais do partido. O Cunhal apreciou muito o livro e terá passado a admirá-lo como escritor. Saramago não fazia literatura pela literatura, tinha sempre um objectivo, em última análise ideológico. Se formos ao A Viagem do Elefante talvez nesse se note menos. Ele tinha sempre um objectivo com cada livro, mais ou menos conseguido. Mas a radicalidade também não convinha ao PCP. O Ensaio Sobre a Lucidez (2004) põe o partido completamente zangado com ele. O objectivo do partido nunca foi que se votasse em branco. Eles não gostaram. Mas para o Saramago aquilo fazia sentido, porque é a denúncia da sociedade capitalista, do sistema, das coisas que não funcionam. Então a única solução, e por que não se consegue através do voto atingir aquilo que é a sociedade perfeita, as pessoas votam em branco. Era a solução radical do Saramago, que ultrapassa em muito aquela que era a do partido comunista.

Percebe-se ao longo do livro que as relações de Saramago com Mário Soares passaram de muito más a boas. Esta viragem deveu-se ao facto de a política se ter tornado menos aguerrida ou houve alguma outra coisa que a provocou?
Há o lado da literatura, que é muito forte. Acerca disso há uma carta que o Saramago escreveu ao Eduardo Lourenço, publicada há muito pouco tempo no JL [Jornal de Letras, Artes e Ideias], em que ele conta essa história. Depois do Verão Quente o Saramago ainda continuou a insultar o Soares nas crónicas que escrevia no Extra. O Soares era um escritor frustrado, fiz-lhe a biografia e estou à vontade para dizer isso. Tinha uma grande admiração pela literatura, comprava e lia tudo o que, sobretudo, os autores portugueses iam publicando. A certa altura, era ele primeiro-ministro do governo do Bloco Central, escreveu uma carta ao Saramago com elogios ditirâmbicos sobre o Memorial do Convento. E diz que lhe está a escrever aquilo independentemente das ideias políticas e do que aconteceu entre eles. E de facto, o Saramago, que sempre gostou que lhe afagassem o ego, apreciou muito, e respondeu-lhe também com uma carta muito afectiva.

A parte mais incómoda desta biografia diz respeito ao lado da vida privada. Algumas mulheres revelaram avanços físicos não consentidos por parte de Saramago. Houve vergonha nestas revelações ao contarem o que contaram?
Houve bastante. Não querem assumir porque ficam expostas socialmente. Se o fizessem, no meio social em que se movimentam, as relações que têm, de amizade e outras, tudo isso, acham elas que sairiam de alguma forma prejudicadas. Por isso querem manter o anonimato. Algumas mantiveram-se amigas do Saramago e da Pilar, o que é curioso. Se revelassem agora os nomes, seria muito complicado para as suas relações. E nós, aqui em Portugal, não estamos numa fase de denúncia MeToo como nos EUA. Estamos numa fase mais recuada, nem sei se alguma vez lá chegaremos.

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