Kirill Serebrennikov e Milo Rau, dois elefantes numa sala russa

Por motivos políticos, dois encenadores não puderam estar presentes na cerimónia de entrega dos Prémios Europa de Teatro do último sábado em São Petersburgo. Um está em prisão domiciliária, o outro não obteve o visto em tempo útil.

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O encenador e cineasta russo Kirill Serebrennikov está actualmente a ser julgado por desvio de fundos públicos DR
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O encenador suíço Milo Rau não obteve o visto a tempo de poder receber o Prémio Realidades Teatrais no sábado passado em São Petersburgo Michiel Devijver

A cerimónia de atribuição dos Prémios Europa de Teatro 2018 que decorreu este sábado no Teatro Alexandrinsky, em São Petersburgo, ficou marcada não tanto pela celebração dos presentes quanto pelos “dois elefantes na sala”, nas palavras do encenador e dramaturgo polaco Jan Klata, um dos distinguidos (tal como o português Tiago Rodrigues) com o Prémio Realidades Teatrais. Depois de nomear Milo Rau e Kirill Serebrennikov, os dois grandes ausentes da cerimónia, Klata fez saber que sentia “a língua como se estivesse em prisão domiciliária" e remeteu-se ao silêncio, que "é de ouro”.

O caso do encenador e cineasta russo Kirill Serebrennikov, que foi um dos vencedores do Prémio Europa – Realidades Teatrais em 2017, é conhecido. Assumido crítico do regime de Putin, foi detido em Agosto desse ano, acusado de desvio de dinheiros públicos, e mantido desde então em prisão domiciliária, tendo o seu polémico julgamento começado há pouco mais de um mês, sob forte contestação internacional. Tiago Rodrigues, que em São Petersburgo fizera já uma menção a Serebrennikov na leitura do texto Burning the Flag, dedicou-lhe também a recitação em russo do Soneto nº30 de Shakespeare (que em By Heart, espectáculo que levou ao programa oficial do prémio, é usado como símbolo de resistência, das ideias e das palavras que os regimes não podem cercear). Aquilo que o silêncio de Klata deixou por explicar foi em que medida o encenador suíço Milo Rau, premiado nesta edição, estava também implicado.

O esclarecimento chegou passados alguns minutos, quando o crítico francês George Banu leu a mensagem enviada pelo próprio Rau, em que este se confessava “pouco surpreendido” perante as dificuldades em obter o visto que lhe permitiria a entrada na Rússia. “Desde o nosso projecto The Moscow Trials, há cinco anos, em que examinávamos criticamente a liberdade artística na Rússia, deixámos de poder entrar neste país”, escreveu o artista. Os problemas burocráticos alegados desta vez só ficaram resolvidos na sexta-feira, tendo o artista suíço sido instado a dirigir-se à embaixada russa em Antuérpia no espaço de duas horas, quando já nem sequer se encontrava em território belga (onde habita) e numa altura em que o seu filme The Congo Tribunal estava já a ser exibido em São Petersburgo, sem a sua presença.

Numa edição do Prémio Europa de Teatro em que muito se falou sobre o papel a desempenhar pelos artistas num continente a braços com restrições das liberdades, o ausente Milo Rau veio questionar “como podemos celebrar o poder e a liberdade do teatro, como podemos celebrar-nos e às trocas europeias, se ao mesmo tempo ficarmos calados perante o facto de um dos vencedores do ano passado se encontrar à mercê de um julgamento-espectáculo”. No palco do Teatro Alexandrinsky, desta vez a realidade não cedeu muito espaço à ficção.

O PÚBLICO viajou a convite do Teatro Nacional D. Maria II e do Prémio Europa de Teatro

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