Loureiro dos Santos, a lucidez pura

Loureiro dos Santos desconfiou do argumento de George Bush e Tony Blair para invadir o Iraque. A lucidez pura do general que ontem morreu, aos 82 anos, esteve mais uma vez do lado certo.

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“Pois se viu as provas não acredito nelas.” O telefonema de José Loureiro dos Santos para o então primeiro-ministro Durão Barroso acabou mal. Durão tinha “visto” as provas que conduziram à guerra do Iraque num briefing no Reino Unido com Tony Blair. Loureiro dos Santos desconfiou do argumento de George Bush e Tony Blair para invadir o Iraque. A lucidez pura do general que ontem morreu, aos 82 anos, esteve mais uma vez do lado certo.

Loureiro dos Santos tinha uma noção apurada de história e estratégia. “Sempre procurei ser um bom militar, comportar-me como um bom líder militar, mas nunca deixei de ler. Basicamente, História”, disse, em entrevista ao PÚBLICO em 2015. Nunca deixou de ler e de intervir. Foi corajoso a lutar pelo que defendia ser o correcto. Quando se demitiu de chefe de Estado-Maior da Armada no tempo de Cavaco Silva, por causa da contestada “lei dos coronéis”, sacrificou a possibilidade de ascender ao topo da hierarquia, chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas. 

O seu papel, a seguir ao 25 de Abril, na defesa da instituição de uma democracia à maneira ocidental, foi claro pelo envolvimento no 25 de Novembro — não enquanto operacional, mas enquanto estratego — e no trabalho pela entrega do poder que esteve durante algum tempo a seguir à revolução nas mãos dos militares à tutela civil. Afinal, Loureiro dos Santos, que conhecia bem a História, sabia que “a instituição militar criou, manteve e destruiu a ditadura”, como escreveu nos 40 anos do 25 de Abril. Teriam de ser os militares a devolver o poder que detiveram durante mais de 50 anos às instituições democraticamente eleitas e Loureiro dos Santos teve um papel decisivo na lei que consagrou a subordinação do poder militar ao poder político. 

José Loureiro dos Santos, o homem natural de uma aldeia perto de Sabrosa cujo destino imediato era ser caixeiro e que por intervenção de um professor acabou por ir estudar para o liceu do Porto — onde foi o melhor aluno —, faz parte de um escol de personalidades que, nascidos no país pobre e sem oportunidades da ditadura, se ergueram verdadeiramente acima das suas possibilidades na casa de partida e construíram o Portugal moderno. Todas as gerações que vieram depois tiveram uma vida mais fácil. Muitos terão dificuldade em compreender a capacidade de agigantamento que marcou homens como Loureiro dos Santos.

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