A Shakespeareada de Matías Piñeiro

Apesar de ser argentino, Matías Piñeiro está mais do lado de Eric Rohmer do que de Lucrecia Martel e tem vindo a filmar sob a inspiração de Shakespeare. Vai estar no Porto/Post/Doc para uma pequena retrospectiva.

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“Ainda sou um cineasta pequenino,” ri-se. Mas não é bem verdade. Matías Piñeiro é uma das figuras mais interessantes do cinema argentino pós-Lucrecia Martel, e um “afilhado” da nova cinefilia independente global, graças à sua presença recorrente no festival de Locarno, onde três das suas cinco longas estiveram a concurso. Em Portugal, os seus filmes têm sido mostrados regularmente fora do circuito comercial — Viola esteve na competição do LEFFEST, La Princesa de Francia e Hermia & Helena no Festival de Cinema Argentino e este último também no IndieLisboa.

Mas o foco que é este ano dedicado a Matías Piñeiro pelo Porto/Post/Doc, entre 26 e 29, vai ser a primeira verdadeira oportunidade de contextualizar o trabalho do argentino, que se tem nos últimos anos dedicado a explorar o teatro de Shakespeare, através de uma série idiossincrática de filmes a que chama, meio a brincar, “A Shakespeareada”. Trata-se de uma série muito Rohmeriana de variações sobre o amor, pegando em elementos específicos das comédias do Bardo que transpõe para a “geração milenial” dos nossos dias, construindo estafetas românticas entre rapazes e raparigas que vivem em constante movimento.

Nada parece estar mais longe do bardo de Stratford-upon-Avon do que as ruas da Buenos Aires contemporânea, mas Piñeiro (n. 1982) defende que a distância não é assim tão grande. “Muitas das coisas que Shakespeare expressava ressoavam comigo,” explica por telefone de Nova Iorque, onde reside há alguns anos. “Surpreendeu-me que um texto tão antigo, num inglês tudo menos contemporâneo, num mundo que não pode ser mais estranho para nós, lançasse ideias que atravessavam o tempo e chegavam até nós sobre a amizade, o amor, a maneira como as pessoas se relacionam. A dinâmica e a dialéctica do amor que perdoa em Como Lhe Aprouver, por exemplo, tocou-me particularmente.”

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Shakespeare nunca é adaptado à letra: é muito mais uma inspiração, um pretexto para Piñeiro construir narrativas soltas, em constante fluxo, onde não se aplicam as regras tradicionais do princípio-meio-e-fim, que parecem ser criadas no próprio instante em que estão a ser filmadas. “O cinema pode ser o registo de um encontro de um actor com um texto,” lança o cineasta. “Tem essa capacidade de documentar um encontro, mesmo que o encontro seja ficcional. O que me interessa é ver o trabalho desse actor frente a estes textos e frente ao mundo que a obra me oferece. Não quero mover-me num mundo de ilusões, a fingir que estamos num mundo shakespeareano. Não: estamos no nosso mundo, nesta cidade, neste país, neste momento. E isso vai de alguma maneira deixar uma marca. Os filmes apenas representam o momento como uma série de pessoas percorreram este texto num determinado momento num determinado lugar.”

Esse lugar é quase sempre Buenos Aires; essas pessoas são uma companhia muito unida de artistas e técnicos que se repetem de filme para filme, com o director de fotografia Fernando Lockett, a directora artística Ana Cambre, a engenheira de som Mercedes Tennina, o compositor Julián Tello ou as actrizes Agustina Muñoz e María Villar, mas por onde vão entrando igualmente “companheiros de viagem” como os cineastas Mati Diop e Dustin Guy Defa. “É muito bonito perceber que as pessoas querem continuar a filmar connosco,” confessa Piñeiro. “Vou começar a rodar em Janeiro em Buenos Aires o meu novo filme, e as pessoas estão excitadas, entusiasmadas, têm vontade de trabalhar umas com as outras. Isso é lindíssimo.”

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Rommel Demano/Getty Images

É também um testemunho da relação muito especial que Piñeiro sabe criar com a sua equipa, e do modo como ela se tem mantido intacta ao longo deste ciclo de filmes, iniciado em 2011 com a média Rosalinda, inspirada por Como Lhe Aprouver. Viola (2012) baseia-se em Noite de Reis, Penas de Amor Perdido originou La Princesa de Francia (2014) e Sonho de uma Noite de Verão gerou Hermia & Helena (2016) — que é, de todos, aquele onde “há menos Shakespeare, ou antes, onde não há Shakespeare enquanto teatro”. Os dois próximos filmes vêm também da obra do Bardo: Ariel, projecto ainda em desenvolvimento a partir de A Tempestade, pensado a quatro mãos com o galego Lois Patiño a convite do festival dinamarquês CPH:DOX; e Isabella, que começará a rodar em Janeiro, baseado em Medida por Medida.

A ideia de um ciclo de filmes esteve sempre presente. “Senti que não esgotava o material de base que Shakespeare nos dá num único filme”. Mas Piñeiro deixou-se, ele próprio, surpreender pelo modo como tudo foi acontecendo. “Continuar a fazer filmes com esta equipa era algo que não estava pensado a fundo e não me dei conta da força que isso trazia,” explica o realizador. “Quando colocas Rosalinda ao lado de Hermia & Helena, nota-se imediatamente a diferença de idades, o amadurecimento, meu mas sobretudo dos actores. Essa evolução, esse crescimento, aconteceu porque a vida foi acontecendo. e porque felizmente pudemos continuar a filmar juntos, desta maneira. Mas não estava à espera disso,” diz, antes de admitir que as ligações entre os filmes se foram alterando ao longo do tempo.

Em entrevistas, Piñeiro disse que cada novo projecto desta “Shakespeareada” funcionava sempre por oposição ao anterior, mas as ligações subterrâneas, intensas, entre os filmes parecem dizer o contrário. “É uma contradição”, reconhece. “Por um lado, faço cada filme graças ao anterior — economicamente, um filme ajuda a financiar o seguinte. Mas se num trabalho muito os grandes planos, no seguinte vou querer trabalhar outra coisa sobre a qual ainda não me debrucei, sobretudo tendo em conta que vou repetir outros elementos como Shakespeare, Buenos Aires, actores. Mas depois, sim, também existem interligações pensadas, ligações directas entre cada filme” — ecos que se repetem de projecto para projecto.

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Piñeiro reflecte no ciclo do Porto/Post/Doc como um exemplo disso. “Estas retrospectivas obrigaram-me a voltar atrás, a ver um filme a seguir ao outro. E compreendi que fui fazendo estes filmes de dois em dois anos, trabalhando-os autonomamente, mas por exemplo alguém que se sente no Porto a ver os meus filmes pode ver num só dia três filmes que para mim representaram sete anos de vida. Produz algo de interessante, uma condensação de experiências em que não tinha pensado...” E isso é importante porque como realizador, interessa-lhe “ter um espectador activo, porque isso torna o filme melhor. Expande-o. O cinema potencia algo no espectador e o espectador potencia algo de novo. Não entro em diálogo para que o espectador diga o mesmo que eu; entramos em diálogo para que nesse vínculo saiamos os dois enriquecidos.”

O foco Porto/Post/Doc sobre Matías Piñeiro, com a presença do realizador, compõe-se de quatro sessões, sempre às 21 no pequeno auditório do Rivoli: a longa Viola antecedida da curta de 2002 Una Mujer Silenciosa (dia 26); a longa La Princesa de Francia apresentada com a curta documental In the Museum (dia 27); a longa Hermia & Helena (dia 28); uma carte blanche escolhida pelo realizador com a exibição de Il Monte delle Formiche de Riccardo Paladino (dia 29). O programa completa-se com uma master class de Piñeiro (dia 29 às 16h no espaço Selina, rua das Oliveiras, 61).

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