O Leste, a BMW e uma ponte sobre o Atlântico

O que irão fazer os britânicos com a sua liberdade de acção?

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1. Muita gente se interrogará como foi possível ao Reino Unido chegar ao caos que envolve as negociações do "Brexit. May tenta agora um último forcing para não perder o comboio do calendário fixado para a ratificação de um acordo de saída. Joga no tudo ou nada. Não agrada a ninguém: nem aos extremistas do seu partido, nem aos que estão dispostos a lutar até ao fim pela permanência do Reino Unido na União. Mas o que vale a pena, talvez, perceber é como o Governo britânico e a sua classe política se deixaram arrastar para uma situação em que se joga o futuro de 60 milhões de britânicos, praticamente sem um plano bem delineado, sem objectivos bem definidos e sem uma estratégia negocial consistente. Em primeiro lugar, houve o inesperado resultado do referendo de há dois anos, quando David Cameron resolveu jogar na roleta o destino do seu país por mero interesse partidário, crente em que o resultado só poderia ser um. Deixou como legado um enorme ponto de interrogação sobre o destino do seu país num mundo mergulhado no caos, onde o que se tinha como garantido ontem, pode já não o ser amanhã.

2. Mas houve também à partida uma série de enganos que rapidamente se transformaram em desenganos. Basta recuar aos primeiros meses depois do referendo de Junho de 2016 para detectar dois deles, porventura paradigmáticos. O primeiro chama-se o “factor BMW” — a Alemanha estaria sempre disposta a dar ao Reino Unido as concessões pretendidas, desde que a sua poderosa indústria automóvel não fosse afectada. O Reino Unido é o maior mercado europeu para as exportações dos carros de alta gama alemães. A BMW tem fábricas do lado de lá da Mancha que veriam a sua produção afectada. Primeiro erro: entre o principal interesse estratégico alemão, que é manter a Europa unida, e o mercado britânico, não seria difícil de adivinhar para que lado cairia Berlim. Para Merkel, foi esta sempre a questão: manter os outros 27 unidos. Um acordo demasiado vantajoso seria um incentivo para que outras capitais caíssem na tentação de uma nova relação com Bruxelas com vantagens e sem obrigações.

3. Segundo erro de avaliação: Londres contaria sempre com meia dúzia de aliados indefectíveis à mesa das negociações, entre os quais alguns países da Europa do Leste, mas também a Holanda ou Portugal, com os quais mantém velhos laços históricos e económicos. Nada disso aconteceu. A Polónia ou a Hungria, por muito que partilhem a visão eurocéptica das Ilhas, sabem fazer contas: as suas economias são altamente beneficiárias da integração europeia, para além do sentimento de segurança que a Europa lhes confere. Nunca, ao longo do processo, desalinharam com as posições do negociador principal, Michel Barnier. Londres não percebeu que esses países nunca trocariam o certo pelo incerto e que nunca poderia oferecer-lhes nada de comparável com o que a União lhes oferece, por mais que vão protestando. E nem é preciso ir até ao Leste. Matteo Salvini também se apresentou como um defensor dos britânicos, acusando Bruxelas de se mover por mera “sede de vingança”. O “grito de libertação” dos britânicos encaixa perfeitamente na sua retórica antieuropeia. O problema é que é, sobretudo, retórica. Salvini nunca teve a menor intenção de contestar a condução do processo negocial, nem de quebrar a unanimidade dos outros 26. A própria Irlanda, com uma economia muito dependente da britânica, para a qual vende 15% do que produz, nunca hesitou sobre de que lado devia estar.

Para além das questões de identidade, o mercado europeu é ainda mais vital para a sua economia e para a sua autonomia. A Holanda é um dos países que mais perde, de tal forma as duas economias estão interligadas. Fica sem o seu principal parceiro na defesa dos mercados livres e na resistência a mais integração. Partilha com Portugal a mesma visão euro-atlântica da sua inserção estratégica no mundo. Não gosta de uma Europa apenas continental. Mas a escolha nem sequer se punha. Para Lisboa, tudo o que ponha em causa coesão política europeia é negativo.

4. Finalmente, o seu maior erro de cálculo estratégico: manter o estatuto de aliado preferencial dos Estados Unidos, que conservou desde a II Guerra, e o seu papel de ponte entre os dois lados do Atlântico. Trump bombardeou a ponte. Não se imagina que trate o Reino Unido de forma preferencial em matéria de comércio. O seu desinteresse pelo destino da Europa é total, a não ser no que respeita à balança comercial. Não terá particular simpatia por May (o seu grande amigo é Farage), porque o Reino Unido não está prestes a cair para o lado dos populistas e nacionalistas de quem é amigo. A liberdade de comércio continua a ser um princípio ao qual os britânicos se mantêm fiéis. E a defesa europeia não é posta em causa, seja qual for a forma da saída.

5. O que irão fazer os britânicos com a sua liberdade de acção? Os defensores do "Brexit" menos ideológico admitem que o seu país possa recuperar o papel de “intermediário” num mundo global, apostando nas suas relações privilegiadas com vários continentes, tirando partido da Commonwealth e da sua capacidade de negociar acordos de comércio com potências emergentes, algumas de língua oficial inglesas e antigos membros do Império, como a Índia e a África do Sul. Por isso, a permanência na União Aduaneira é impossível, porque lhes retira a liberdade de negociar acordos comerciais. É um tiro no escuro, quando a atracção do grande mercado europeu é quase irresistível. Não há, como escreve o Guardian, um “Império 2.0”. O que houve foi a inexistência de um Labour capaz de combater pela Europa com alma e coração. Blair, Brown ou Miliband tê-lo-iam feito. Corbyn nunca faria esse papel.

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