O pôr-do-sol e a minha sobrinha de quatro anos

A minha sobrinha tem uma alegria transparente quando mergulha no mar, quando faz construções na areia, quando brinca com a cadela, quando se ri. Ela aproveita a vida com uma perna às costas, e esse talento não é assim tão simples.

Estávamos a sair da praia, ainda havia uns pontinhos minúsculos e prateados no mar, aquele vento adocicado que deve vir do deserto. Estávamos bem no meio daquele Verão a entardecer devagarinho, mas eram horas, tínhamos de ir. Saímos da nossa praia escondida pelas arribas e metemo-nos a caminho. Ela acompanhava-nos toda despachada, sem relógio, sem tempos, sem medos, sem medo do mar, sem medo das arribas, sem medo do calor ou do frio.

A minha sobrinha tem quatro anos e o que me espanta não é o mundo que ela vê, embora isso me devesse espantar também. O que me espanta é o espanto dela pelo mundo e pela vida. Às tantas, a meio do caminho, ela pára. Pára de repente, cruza os braços, põe uma cara séria, o assunto era sério, e comunica-nos: “Agora vou ver o pôr-do-sol.” E nós, apanhados desprevenidos pela solenidade da comunicação, tivemos de aceitar a ordem e ver também o pôr-do-sol. Não se nega a poesia do mundo a uma criança. Ela gostou de ver, mas eu gostei mais. A verdade é esta: depois dos mil pores-do-sol que já vi na vida, aquele soube-me diferente. Posso não me espantar tanto com o mundo, mas espanto-me com o espanto dela pelo mundo e pela vida, e isso, para mim, vai quase dar ao mesmo.

Ao fundo, no bar da praia, alguém tocava ao vivo uma versão da What a wonderful world, de Louis Armstrong. O cenário não podia ser mais o de um postal, era quase piroso. A prata do mar, a areia sossegada, a música — a versão era má — e nós ali pespegados no meio das arribas a ver o pôr-do-sol. Não, ninguém fez uma fotografia para o Facebook.

Foto
Pedro Cunha/arquivo

A protagonista da cena era ela. Uma pequena de braços cruzados, olhos até ao longe, dali não saía sem que o último raio entrasse no mar. “Agora vou ver o pôr-do-sol.” Como se nos dissesse que não queria saber de horas, nem de jantares, nem de banhos em casa. Eu olho para ela e espanto-me.

Tem uma alegria transparente quando mergulha no mar, quando faz construções na areia, quando brinca com a cadela, quando se ri. Ela aproveita a vida com uma perna às costas, e esse talento não é assim tão simples.

Vamos perdendo o dom com o tempo, se calhar. Passamos a procurar de outras formas, no mindfulness e na auto-ajuda e seja lá mais em quê, essa alegria pelo momento. Esse gosto pela vida. Pelas coisas boas da vida: os banhos de mar, na água gelada, na água quente; as correrias na areia; o mistério dos livros novos.

A minha sobrinha também gosta de cantar alto. Vamos pela rua fora até ao café a cantarolar o Yellow submarine: “We all live in a yellow submarine, yellow submarine, yellow submarine.” E eu aproveito ninguém reparar em mim quando ela está por perto para cantar também, bem alto e muito mal.

Agora que os dias frios já chegaram, estamos a programar levá-la à neve. Vai ver neve pela primeira vez. Espero que, nessa altura, esteja um manto imenso de neve na serra da Estrela. Quero ver a reacção dela à novidade da paisagem. Eu já vi neve, mas devo andar tão distraída que nem me lembro bem de nada. Não faz mal. Para mim, quando estou com ela, é como se fosse tudo a primeira vez.

Acontece-me com ela, também com a minha outra sobrinha e, claro, com a minha filha, mas deixo essa parte para próximas crónicas, porque, apesar de a minha filha ser ainda muito pequenina, o tamanho dela no mundo nem cabe dentro de mim. Deixo para a próxima o poema de Jorge de Sousa Braga: “Tudo gira, / Neste mundo / Tudo gira, / A Lua em redor da Terra, / e a Terra em redor do Sol, (…) / Tudo gira / Neste mundo / Tudo gira / Que eu gire em redor de ti / Não me admira.”

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