Desconstruções, interpretações e bigodes postiços

O dia em que me estreei à mesa de um restaurante com o selo de qualidade Michelin. Alma, Lisboa, uma estrela.

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Rui Gaudêncio

Imagino que o anonimato seja a melhor arma dos críticos da Michelin - chamam-lhe inspectores, certo? Imagino-os como os agentes secretos da gastronomia, uma mala cheia de perucas, bigodes postiços e tinta para o cabelo, mestres na arte de tirar notas sem se denunciarem, donos de uma memória prodigiosa para tudo o que todos os sentidos lhes dizem, e a capacidade para resumirem toda essa informação sensorial a uma, duas ou três estrelas (ou nenhuma). Imagino que nunca comam sozinhos, que reservem mesa com nome falso e que vivam na angústia de não poderem dizer a toda a gente que lhes pagam para viajar e comer nos melhores restaurantes do mundo.

Não fui ao Alma com cabeleira postiça, não fiz a reserva com nome falso e fui sozinho. Não fui lá para dar estrelas, porque o Alma de Henrique Sá Pessoa já tem uma desde 2016. Quinta-feira, hora de almoço, 12h30. Dress code recomendado: smart casual. Sento-me então à mesa do Alma, numa mesa para dois ocupada por um, com vista para a cozinha. A ementa dá-me a liberdade de ser o dono da minha própria refeição (pedir à la carte), mas eu levava instruções bem claras, tinha de ser um dos menus de degustação. Serão duas horas em que ouvirei muitas vezes “desconstruído” e “interpretação do chef”. Mas este texto não será para definir se as desconstruções e interpretações de Henrique Sá Pessoa merecem, ou não, o selo de qualidade que representa uma estrela deste fabricante francês de pneumáticos. Este será um texto de primeira vez.

Ora pela primeira vez entrei num “estrela Michelin”. “Boa tarde, bem-vindo, etc. Tem restrições alimentares?”, pergunta o maître. Virá logo a seguir o sommelier para sugerir um aperitivo. Sinto-me logo esmagado pela escolha, vários tipos de espumante e cocktails e, como o desafio é deixar-me levar nesta primeira vez, peço uma sugestão e aceito a recomendação. Vem para a mesa um Negroni, cocktail italiano com gin, vermute, Campari, muito gelo e uma rodela de laranja.

É a bebida que me acompanha durante a observação da carta de vinhos e o primeiro momento da viagem pelo menu Alma, uma “experiência crocante” de tapioca com maionese de ostras e uma espécie de shot de algas. Ao primeiro momento, segue-se logo o segundo, uma tempura de pimentos vermelhos sobre um puré de tomate seco, o amargo das cinzas da tempura a jogar com o doce de tudo o resto, e um terceiro, uma “interpretação do chef” do que os portugueses conhecem por amêijoas à Bulhão Pato.

Voltemos ao vinho. Estou quase a ir para o Romanée Saint Vivant de 2011, um tinto da Borgonha (e a garrafa mais cara da carta, a 3800€), mas acabo mais uma vez a pedir uma sugestão ao sommelier para um copo de vinho, talvez dois (serão dois). Vem um do Douro, Quinta do Sagrado Grande Reserva, dado a provar ao cliente – também não irei tentar uma nota de prova, apenas que tinha boa queda no copo e uma incrível capacidade de se evaporar rapidamente (esta seria a parte com um emoji a piscar o olho).

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Rui Gaudêncio

O restaurante começou a encher e, de repente, já não tinha o Alma só para mim. Primeiro uma rapariga sozinha na mesa do canto, pouco depois um casal, outra mesa para mãe e filho, seguidos de um grupo um pouco mais numeroso. Todos provavelmente atraídos pela estrela que estava à porta e conduzidos pelo guia que fala do Alma como “attractive restaurante in the heart of Chiado district” com “high quality cooking”. Alguns irão tirar fotografias aos pratos, alguns irão partilhar as fotos nas redes sociais, alguns terão blogues, talvez algum seja um crítico Michelin.

Prossegue a viagem gastronómica, sempre com a nota informativa a acompanhar. Cavala em puré de beringela, um pequeno tentáculo de polvo com paprika fumada, um gaspacho que nos tenta enganar com a sua aparência de sorvete vermelho. E depois do gaspacho vem o pão, que não é uma interpretação do chef, nem é pão desconstruído. Este pão também tem o seu momento crocante, uma deliciosa côdea a manter a integridade estrutural da fatia, que pode ser consumida a seco, com a manteiga que tem uns pozinhos de sal por cima ou com o azeite produzido em exclusivo para o Alma.

É nesta altura que o bloco de notas vai ficando fechado, porque as pausas para a escrita estão a atrapalhar. Os momentos da viagem continuam a ser sabores familiares em combinações estranhas, cenouras assadas com bulgur, o foie gras salteado com maçã, granola e café. A seguir, duas interpretações do chef de coisas muito portuguesas, a sopa alentejana e o leitão assado, e são os dois maiores triunfos de toda a viagem, pelo sabor, claro, mas sobretudo por quatro décadas de vivência culinária no meu país. São os coentros da sopa e a pele crocante do leitão, as lascas de bacalhau e aquele molho de pimenta, o pão e a carne que se desfaz na boca.

Para o fim, duas sobremesas, a primeira, um sorbet de lima, para limpar o palato, a segunda, mais doce, em que a amora (em várias texturas) é o elemento dominante. “Deseja café?”, é uma das últimas perguntas que me irão fazer. Não pode ser só café, penso. É só café. Vem com os três últimos e pequenos momentos, um deles um pastel de nata desconstruído, uma pequena bola mais pequena que um berlinde, com capa crocante e um interior líquido que sabe, de facto, a pastel de nata. Contando com tudo, desde o Negroni ao pastel de nata (sem contar com a água), foi um itinerário com 18 etapas, provavelmente as mesmas etapas que o tal inspector Michelin com bigode postiço (talvez na mesma mesa) considerou uma das melhores refeições do planeta.

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