Mutilação genital feminina existe em Portugal

A MGF constitui uma violação dos direitos humanos, uma forma de violência contra as mulheres e um atentado à sua saúde. Portugal não pode ficar para trás.

No bairro Hafia, na Guiné-Bissau, o ambiente é de festa. As roupas coloridas e a música tradicional incentivam as pessoas a dançar na terra vermelha. A comunidade está organizada num grande círculo que aguarda com expectativa uma peça de teatro ao ar livre. Não é uma representação qualquer. É um momento cenográfico único para, com o apoio de personagens, dizer não às práticas tradicionais nefastas associadas à mutilação genital feminina e mostrar a todos os presentes que não há qualquer suporte cultural ou religioso para prosseguir esse tipo de comportamentos. A mutilação genital feminina é uma prática ilegal, com impactos múltiplos, sobretudo na saúde, que ainda afeta mais de 200 milhões de meninas e mulheres em mais de 50 países, incluindo Portugal.

No passado mês de setembro realizei uma visita de trabalho de quatro dias à Guiné-Bissau, integrando uma comitiva liderada pela secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro. Durante o tempo em que estivemos naquele país foi possível reunir com vários dirigentes e associações e visitar comunidades em Bissau e no interior, bem como equipamentos de saúde, permitindo conhecer, no terreno, o impacto que as excisões totais ou parciais de partes genitais têm em vários momentos da vida das meninas e mulheres que a elas são sujeitas, nomeadamente na gravidez e parto.

A visita foi também uma oportunidade para testemunhar o resultado positivo do trabalho em curso, designadamente de projetos relacionados com o fim da mutilação genital feminina (MGF) e dos casamentos precoces e forçados, projetos estes que têm sido exemplarmente impulsionados pela inspiradora Fatumata Djau Baldé, presidente do Comité Nacional para o Abandono das Práticas Nefastas, com o apoio do Governo de Portugal.

A MGF está longe de ser um problema exclusivo dos países africanos. É um problema que também existe em Portugal, sobretudo em algumas bolsas de migrantes africanos na zona de Lisboa e que exige uma resposta integrada para pôr fim a esta violação dos direitos humanos. Conhecer a realidade é imprescindível para procurarmos soluções que respeitem as culturas e que trabalhem com as pessoas a partir da matriz de perceção e ação adquirida.

Foi precisamente no contexto do trabalho partilhado entre a Saúde e a Cidadania e Igualdade que se enquadrou a visita feita à Guiné, permitindo afinar as medidas específicas de um protocolo a implementar na Região de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e que abrange os Agrupamentos de Centros de Saúde de Sintra, Amadora, Loures-Odivelas, Arco Ribeirinho e Almada-Seixal.

Nos últimos anos foi possível melhorar a capacidade dos sistemas de informação da saúde para incluir na Plataforma de Dados da Saúde um campo específico de registo para a identificação de casos de MGF nas mulheres que acorrem aos serviços de saúde. São mais de 250 as situações já registadas.

Esse trabalho tem sido complementado por uma sensibilização e preparação dos profissionais de saúde para este tema, pretendendo-se agora estruturar o que já existe e densificar a promoção de projetos, a realização de ações de informação e sensibilização, num processo que passa necessariamente por envolver comunidades locais, redes transdisciplinares e multissetoriais. Esta ação deve privilegiar os projetos junto das escolas, enquanto espaços privilegiados para a formação das crianças e jovens também em temas relacionados com a saúde e a cidadania. A multipolaridade na abordagem exige uma integração das políticas em torno de objetivos comuns, o que requer a articulação de áreas como a cidadania e igualdade, saúde, educação, segurança social, justiça e forças de segurança, entre outras.

A necessidade de intervir para a erradicação da MGF é reconhecida em instrumentos internacionais, como a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica (Convenção de Istambul). A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável tem como lema principal “não deixar ninguém para trás”. A MGF constitui uma violação dos direitos humanos, uma forma de violência contra as mulheres e um atentado à sua saúde.

Portugal não pode ficar para trás. Dar uma resposta integrada conjugando a cooperação com os países africanos, e a ação nas bolsas ainda existentes no nosso território ao fenómeno da MGF, é um desafio de cidadania e de civilização que vale a pena continuar a abraçar.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Comentar