Ou comes a papa ou chamo o Observador

Quantos anos têm de passar para que a direita portuguesa possa simplesmente ser a direita portuguesa, e não o Clube de Fãs de Oliveira Salazar, nem a Associação de Admiradores de Jair Bolsonaro, nem o Grupo Recreativo da Trump Tower?

Não queria estar a escrever este texto por razões que explicarei mais à frente, mas teve mesmo de ser – estou farto de viver num país onde o leque de opiniões admissíveis tem a largura da rua da Betesga, e onde a diversidade política é sempre vista como uma ameaça ao regime e reflexo de uma terrível conspiração. Em Portugal, qualquer desvio ao catecismo ideológico das “conquistas de Abril” ganha sempre dimensões tenebrosas: o que eles querem é espezinhar os mais fracos; o que eles querem é favorecer os mais ricos; o que eles querem é recuperar a autocracia salazarista – porque, lá no fundo, no fundo, o seu verdadeiro herói continua a ser o homem de Santa Comba Dão.

Pergunto: quantos anos têm de passar para que a direita portuguesa possa simplesmente ser a direita portuguesa, e não o Clube de Fãs de Oliveira Salazar, nem a Associação de Admiradores de Jair Bolsonaro, nem o Grupo Recreativo da Trump Tower? Quanto anos têm de passar para que passe este sentimento de ter diariamente de pedir desculpa pela existência, porque aquilo que manda a Constituição é caminhar para o socialismo e como a malta não quer caminhar então a sua existência é inconstitucional? Quantos anos têm de passar para que um projecto como o Observador, que nasce da iniciativa de um grupo de accionistas privados que fizeram questão de dar a cara desde o primeiro dia, possa existir ideologicamente à direita sem ser acusado de ter Steve Bannon como guru ou de ser a versão portuguesa da alt-right americana?

Eu não queria estar a escrever este texto porque sou amigo dos fundadores do Observador e porque temos colaborado em vários projectos editoriais. No país do amiguismo, dispenso bem defender amigos que podem defender-se a si próprios, e prefiro evitar o papel de guarda-costas de projectos com os quais mantenho relações profissionais. Mas o número de pessoas que se atiraram ao Observador nos últimos tempos é tão grande, de David Dinis a Pacheco Pereira, de Pedro Marques Lopes a Daniel Oliveira, de Isabel Moreira a Francisco Louçã, passando até por Proença de Carvalho – num texto no DN onde ele defende de forma comovente o liberalismo português (juro!) –, que eu tive aquela sensação muito desagradável que já sentira quando o Correio da Manhã era muito criticado por andar em Paris a avaliar os gastos de José Sócrates: este tiro ao alvo não só é completamente injustificado, como tem na sua origem uma pulsão muito pouco democrática.

Essa pulsão, como já aqui referi em Agosto (“O irmão português de Marine Le Pen”), é a mesma que leva a que muita gente, com admirável regularidade, me aconselhe a ir escrever para o Observador, por considerar que a minha opinião não faz sentido num jornal como o PÚBLICO. A estratégia dos polícias do sistema é esta: acantonar todas as opiniões divergentes num único local, fingir que esse local é constituído por um grupo absolutamente homogéneo de pessoas, e depois caricaturá-lo como a alt-right semifascista portuguesa. Assim, os polícias do sistema enjaulam as ideias que consideram perigosas, e que basicamente são todas aquelas que se atrevem a meter o nariz de fora do seu microzoo mental. Os fundadores do Observador, tal como eu, não podem ser apenas uns tipos com determinadas ideias para o país, das quais se pode naturalmente discordar. Não – eles têm de estar ao serviço de uma conspiração alter-mundial, porque é preciso arranjar um papão para assustar todos aqueles que torcem o nariz à papinha socialista.

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