Lurdes vive na carcaça de uma antiga escola. Para onde irá agora?

No Porto, onde as respostas para sem-abrigo rebentam pelas costuras, há uma antiga escola, no Cerco, onde mora uma dezena de pessoas. “Não nos podem pôr daqui pra fora sem alternativa!”

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Vista de fora, a antiga Escola Preparatória do Cerco, no Porto, parece um lugar largado. Entrando por um buraco que alguém abriu numa parede lateral, sinais contrários. Três homens injectam-se num espaço coberto, quase sem paredes. De repente, uma área arrumada e lavada e, sentados em poltronas dispostas à volta de uma mesa, Lurdes a ajudar Paulinho a fumar “um caneco”.

Não chegou aqui a Estratégia Nacional de Integração das Pessoas em Situação de Sem Abrigo 2017-2023, abordagem holística pensada para que ninguém tenha de permanecer na rua por ausência de alternativas. Não será por acaso que, ainda no princípio desta semana, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, tenha dito que é preciso “ir mais longe” para a cumprir. 

Lurdes e Paulinho não são os únicos habitantes desta carcaça pejada de lixo e protegida por um muro. Uma dezena de pessoas mora aqui. E muitas outras têm as suas casas, os seus trabalhos, mas vêm à hora do almoço ou no final da labuta “fumar um caneco” ou “dar um chuto”. Não por muito mais tempo.

Há umas semanas, num dia que ninguém sabe precisar, estiveram aqui uns “senhores” a avisar que há que procurar outro sítio para encostar a cabeça. Lurdes nem sabe quem são. Os “senhores” só terão falado com quem encontraram à entrada. Não terão palmilhado caminho à procura de Lurdes, de Zé “Pratas” e das outras pessoas que se enfiam em cubículos espalhados pelos vários pavilhões.

Há oito anos que a antiga Escola Preparatória do Cerco foi desactivada. A escola secundária absorveu-a. A Direcção Regional de Educação do Norte e a Administração Regional de Saúde do Norte (ARSN) acordaram que para ali viria a Unidade de Saúde Familiar Novo Sentido e a Unidade de Cuidados na Comunidade. Com a mudança de Governo, o acordo firmado no início de 2011 foi enfiado na gaveta. O investimento foi autorizado pelo Governo em Março do ano passado. “Ainda no decurso de Novembro, vão ser iniciadas as obras”, confirma o assessor da ARSN.

Nessa espera, o lugar transformou-se num porto de abrigo de conforto variável. Paulinho, por exemplo, dorme num colchão abrigado da chuva, mas rodeado de lixo. E Zé “Pratas” dorme num quarto fechado a cadeado. Tem os lençóis e os cobertores esticados numa cama e as roupas dobradas e arrumadas num armário. Tudo imaculado com imagens de Maria alinhadas numa parede. E animado com imagens de modelos penduradas ao fundo da cama.

Os técnicos da cooperativa Arrimo, que aqui apoiam quem consome drogas e/ou está sem abrigo, não receberam informação formal sobre o início das obras. “Esperamos que entrem em contacto connosco”, comenta o director técnico, António Caspurro. “São pessoas que precisam de um espaço para se abrigarem. Há que assumir responsabilidades, não é só pôr as pessoas na rua.”

O Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo é agora coordenado pela Câmara do Porto. O departamento municipal de comunicação lembra, todavia, que “o alojamento de emergência é uma competência da Segurança Social”.

O alojamento temporário rebenta pelas costuras. Mesmo assim, há 15 camas a aguardar há mais de um ano pelo protocolo da Segurança Social, diz o director técnico da Associação de Albergues Nocturnos, Miguel Neves. Falta alojamento permanente que permita libertar o temporário.

“É preciso criar respostas específicas e adequadas”, salienta Raquel Rebelo, que dirige o projecto dos Médicos do Mundo.

A ideia de ir para um albergue não agrada a Lurdes. Não se imagina a partilhar quarto com desconhecidos. “Só se tivesse mesmo de ser. Senão, preferia optar por condições como estas”, admite. Concedia partilhar casa ou apartamento com gente da sua confiança, como Zé “Pratas”, que também não quer enfiar-se noutro buraco: “Isto é nosso! Não nos podem pôr daqui pra fora sem alternativa!”

“Exijo que me respeitem”

Aqui, Lurdes tem um quarto só dela. Não consegue lá dormir desde que encontrou o cadáver de uma amiga que dormia lá perto. Dorme numa tenda, mais perto da saída. Há várias mulheres a circular, mas só duas a dormir aqui todos os dias. “Risco, eu corro sempre”, nota. “Sou mulher. Estou vulnerável a qualquer situação, mas aqui há muito respeito. Tive de impor respeito. Não peço para as pessoas me respeitarem, eu exijo que me respeitem.”

Começou a consumir no dia em que completou 16 anos, já lá vão 23. Trabalhava numa fábrica de velas e um rapaz que gostava dela garantia-lhe a dose. Teve vários trabalhos. A certa altura, pôs-se a traficar. Um dia, bateu com os “costados na prisão”. Esteve dois anos atrás das grades. Saiu em liberdade em 2014 e não tardou a ficar presa à rotina do consumo: fazer pequenos furtos em supermercados, escoar o produto, comprar base de coca, fumar, tomar metadona para controlar a ressaca de heroína.

Certa vez, o Futebol Clube do Porto tinha um jogo empolgante. Havia muito controlo policial no metro. Não arriscou viajar sem bilhete. Passou a noite aqui e percebeu que aqui mais depressa se podia “fazer à vida”. Havia um local imenso para pernoitar, uma boca de tráfico, vários supermercados.

Já se deixou de furtos. “Agarrei-me a servir as pessoas que são como eu”, diz. “Tenho o que eles precisam e o que eu preciso eles trazem.” Precisa de base de cocaína e tem um rolo de papel de alumínio prata, vários kits (com seringas, toalhetes, ampolas de água bidestilada, carteiras com ácido cítrico, filtros, preservativos) e um balde para recolher material usado.

“A maioria das pessoas que vêm aqui pede licença”, enfatiza Rui Salvador, da associação de consumidores CASO, protagonista de um documentário que o realizador Luís Vieira Campos aqui está a rodar. Desenvolveu aqui um projecto de redução de riscos há uns meses e por aqui tem estado. Já organizou até um workshop sobre overdose. A sucessão de cartazes afixados testemunham-no. Muitos alertam para o risco de overdose. “Não deixa de ser o espaço dela.”

O lugar tem vários espaços. Há um sofá e umas poltronas em torno de uma mesa de apoio, onde se sentam alguns a fumar. E um sofá virado para uma mesa, onde Lurdes gosta de estar com os que lhe são mais próximos. Nos móveis de parede, um passe-partout com uma fotografia dela, bibelots, uma bota a servir de jarra com um ramo de penachos, também conhecidos por “pampas”.

Rui é que lhe deu a ideia de limpar um sítio para consumir. Ela e um rapaz puseram mãos à obra. Um bocadinho, mais um bocadinho, mais um bocadinho. Primeiro, ao lado da tenda, montou “uma salinha acolhedora”. “Era lá que a gente consumia”, recorda. “Depois, começou a vir mais gente, mais gente.” Criou aquela sala com várias zonas de estar. A “salinha” ficou reservada para quem se injecta. Quem disse que ainda não há sala de consumo assistido no Porto?

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