A discussão à volta de fake news ou a discussão à volta dos problemas

Há barreiras etárias, vivenciais e de experiência que impedem a comunicação de um olhar adulto destas “coisas” para uma criança.

A discussão que realmente importa é a que está por fazer, porque no estado actual da campanha contra Serralves prefere-se os estereótipos – Mapplethorpe, logo censura e puritanismo, saliva-se pavlovianamente – a discutir algo vai para além da obra de Mapplethorpe mas que tem a ver com a sociedade dos nossos dias. A saber, se uma criança pode ver tudo, sem restrições e sem acompanhamento.

Apenas o Diário de Notícias suscitou a questão indo ouvir quem pode dar respostas mais esclarecedoras e qualificadas, psicólogos e pedopsiquiatras, mas a tese dominante, pelo menos no PÚBLICO, é que quem deve responder a essa pergunta são os artistas, os críticos de arte, os curadores, o “meio” cultural. Quem contesta que seja assim ou não percebe nada de arte moderna, ou é um censor. Eles são os donos da liberdade, acenando como fez o ex-director do Museu, na Assembleia da República, com a Constituição, como se fosse o Livro Vermelho e falando de “liberty”.

Eu não contesto que a liberdade total esteja do lado da criação, e que há quem tenha morrido a defender essa liberdade, como ainda recentemente aconteceu aos caricaturistas do Charlie Hebdo, mas a exposição pública ilimitada de imagens e textos acrescenta uma componente social que não pode ser ignorada. Ela não se limita à questão do olhar infantil, visto que os problemas, chamemos-lhe assim, envolvem a blasfémia, o lugar e as circunstâncias onde se mostra uma obra, uma fotografia, uma performance, ou se lê um texto, mas, devendo em princípio mostrar-se tudo, a forma como se mostra é socialmente determinada. E se o que se pretende é uma provocação, os provocados respondem. Aliás, há muita hipocrisia nesta discussão porque a volta de nós todos estão dezenas de interditos legais, sociais, religiosos e cívicos, uns sensatos, outros censórios, outros de facto puritanos. Desde restrições a horários televisivos, até aos espectáculos, incluindo o banimento legal de discursos do ódio, violência e racismo, que também tem expressão estética, ou não lêem Céline, mas pelos vistos isso não incomoda ninguém.

Mas de que é que estamos falar quando discutimos a exposição pública de parte da obra (pequena, aliás, no conjunto) de Mapplethorpe? O ex-director do Museu de Serralves fez uma comparação enganadora entre os nus masculinos de Mapplethorpe e as esculturas de Miguel Ângelo. Eu quis discutir isto na entrevista dada ao PÚBLICO mas essa parte foi cortada. Há, aliás, um aspecto conexo que é sugerir, ao modo jesuítico da suggestio falsi, de que os corpos homoeróticos incomodavam e, por isso, podia haver homofobia na “censura” das fotografias. Há um público para estas insinuações e há quem saiba usá-lo.  

Também nas partes que não saíram da entrevista eu contestei que fosse o facto de serem descritas como ”sexualmente explícitas” a razão da restrição do seu acesso a crianças. Insisti, e é por isso que a comparação com Miguel Ângelo é redutora e enganadora, que é mais exacto compará-las com as representações medievais do inferno ou com a mosca nas naturezas mortas flamengas. Não são “sexo explícito”, mas sim a trilogia sexo, violência e morte, que aliás lhes dá densidade estética e filosófica. E nessa trilogia, deve-se andar de trás para a frente, da morte para a violência e por fim ao sexo, como o Dr. Freud explicou.

Vamos pois ver do que se está a falar? Proponho como imagem deste “ruído do mundo” uma das obras reservada para crianças, sabendo que ela pode não ser publicada pelo jornal, que aliás sempre ilustrou esta discussão com imagens, chamemos-lhe assim, mais prudentes. Se o fizerem ajudam-me na discussão que muitas vezes se deve a quem não sabe do que está a falar, nem viu a exposição. Por outro lado, se resolverem não a publicar eu serei o último a dizer que houve censura. Coloquem o espaço em branco, não precisam de me explicar nada. O que eu não quero é imagens distantes de pénis erectos para dar a entender que se mostra o que não se mostra. Eu sei que isto vai abrir uma discussão no jornal, só não queria que ela fosse: “ponham lá a imagem para o homem não marcar um pontito, ou não ponham porque não devemos ceder à chantagem”...

Muito bem, passada a porta ou não, temos imagens de um homem a urinar na boca de outro homem, de uma mão enfiada no ânus de outro homem, de um homem vestido de bebé com chupeta na boca. Faço estas descrições puras e duras porque é isto que uma criança vê, não vê arte, nem filosofia, vê as imagens. O ex-director do museu fez uma afirmação na audição parlamentar que está ao nível da conversa de café: que sentido teria reservar certas obras, se tudo se podia ver na Internet. Poder pode, mas não deve, e não é a mesma coisa. Aliás, ficaria surpreendido se uma criança de seis anos procurasse no Google por sadomasoquismo.

Como é que se explicam estas imagens? Dizendo que é um jogo? Mas não é um jogo, isso a criança percebe melhor do que o adulto, até porque sadismo não lhe falta. Que há homens que gostam daquelas “coisas” e que são “normais”? Eu se visse um professor ou um pai a dizer isto a uma criança de seis anos olharia muito de lado a personagem, porque a pedofilia não existe apenas nos ginásios e nas escolas. Talvez se possa explicar tudo, mas há barreiras etárias, vivenciais e de experiência que impedem a comunicação de um olhar adulto destas “coisas” para uma criança. Ou então não estamos a falar da obra de Mapplethorpe.

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