Júlio Resende e a música do Homem na Lua

Em Cinderella Cyborg, o pianista Júlio Resende dedica-se a explorar o encontro entre a música acústica e a electrónica. Esta sexta-feira apresenta-se ao vivo no Teatro Tivoli, Lisboa, seguindo-se a Casa da Música, Porto, a 13 de Novembro.

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Júlio Resende apresenta-se esta sexta-feira em Lisboa e ruma depois ao Porto Tomás Monteiro

Os primeiros segundos de Cinderella Cyborg, título do álbum e do tema de abertura da nova gravação do pianista Júlio Resende – apresentado ao vivo esta sexta-feira no Teatro Tivoli, Lisboa, e dia 13 de Novembro na Casa da Música, Porto –, são ocupados com um tique-taque. Um tique-taque que, sem surpresa, anuncia a marcha de um relógio. O relógio, por respeito à Cinderela a que o músico alude, caminha para a meia-noite, hora em que, sabemos desde a infância, alguma coisa mágica deverá acontecer. Num disco construído sobre a relação entre homem e máquina, entre orgânico e artificial, é tentador ouvir essa marcação rítmica como a contagem decrescente para algo que poderá não ser especialmente bonito de assistir. Mas não é para qualquer cenário de catástrofe que Júlio Resende aponta. Bem pelo contrário.

Cinderella Cyborg é um nome em que o pianista pretende reflectir não um choque, mas um encontro entre aquilo que há de mais inocente e poético – na vida e na música –, e o lado mais maquinal e frio associado à tecnologia. E cita pacemakers ou pernas biónicas como exemplos de “uma boa relação entre o homem e a máquina”. Ainda assim, a imagem mais perfeita que lhe ocorre enquanto símbolo dessa fusão entre tecnologia e poesia é a chegada do Homem à Lua. “A Lua”, justifica ao PÚBLICO, “sempre foi símbolo dos poetas e dos artistas, ao mesmo tempo que é um lugar tão inóspito que precisa de toda a tecnologia possível para ser alcançado. Mas para isso é preciso juntar o espírito da audácia e dos poetas, e tecnológico. A chegada à Lua é, para mim, uma combinação perfeita entre cinderella e cyborg.”

A concretização dessa imagem surge no álbum através do tema Let’s go the moon again, durante o qual Júlio Resende vai desvelando um lirismo ao piano sobre o qual escutamos a gravação da voz de Neil Armstrong, o astronauta norte-americano que primeiro pisou o satélite da Terra. É um dos temas em que menos se sente o conceito a partir do qual o músico quis criar um novo conjunto de temas: a fusão de uma sonoridade acústica (no clássico trio de piano jazzístico que inclui contrabaixo e bateria) e a electrónica (assegurada pelas programações de André Nascimento). Se este é um movimento de “continuidade, ainda que possa parecer também uma ruptura e um desvio”, reconhece, tal deve-se sobretudo ao trabalho que Resende desenvolveu com Nascimento no quarteto Ogre, liderado pela cantora Maria João.

“Há quase dez anos que os dois íamos fazendo algumas brincadeiras com esboços de piano e electrónica”, conta. “Entretanto, depois dos discos a solo que gravei [Amália por Júlio Resende e Fado & Further] e o álbum de Alexander Search, mais virado para o rock, pensei que o próximo passo discográfico passaria por tentar desenvolver o conceito de uma relação benigna entre o acústico e o electrónico, entre o homem e a máquina. Porque gosto dessa junção e não gosto, ao mesmo tempo, da disputa filosófica alarmista de que a máquina pode superar o homem.”

Fado electrónico

Como assumido farol nesta relação musical entre som acústico e electrónico, Júlio Resende cita os Radiohead – “Talvez tenham sido a banda que melhor trabalhou algumas dessas áreas electrónicas”, arrisca – ou Shigeto. Mas também a forma como o hip-hop trabalha há muito os samples serviu de inspiração para Cinderella Cyborg. Tanto assim que o pianista convidou para os temas Cinderella cyborg e Lisbonhood o rapper Sam Azura. Lisbonhood começou por ser uma frase melódica no piano que carregava algum fado nas notas e que Resende quis transformar “em algo mais dançável ou mais urbano”. Foi então que chamou Azura, rapper fugido de Londres para se refugiar em Portugal, a quem pediu uma visão pessoal de Lisboa que pudesse, depois, cruzar com um texto de Fernando Pessoa cantado por Peu Madureira.

Azura estará também em palco nos dois concertos de apresentação, chamado a contribuir para a mistura de linguagens de Cinderella Cyborg com um rap que Júlio Resende descreve como “be bop falado”. Essa relação rítmica que entrevê entre os dois géneros é de uma enorme atracção para si, confessa. Mesmo que a sua relação com o jazz seja hoje “mais de inspiração do que de idioma”. “Gosto mais de usar outros elementos ou outra gramática. A gramática do fado, por exemplo, porque acho que é mais pessoal e é mais intensa do que a gramática americana do jazz.”

Daí que, após Amália por Júlio Resende e Fado & Further, não espante que Júlio Resende traga também os efeitos do mergulho profundo nessa tradição musical portuguesa para o conceito do novo disco. Fado cyborg não é cantado por nenhum exterminador implacável de lenço ao pescoço nem é tocado pelas guitarras portuguesas mutantes inventadas por Nuno Rebelo, antes segue a mesma lógica do restante material – partiu de uma composição que era um inequívoco fado para o pianista e foi submetida depois ao encontro com a electrónica. “E do modo como está”, confessa o músico, “mesmo tratando-se de uma electrónica arrojada, não prejudica o fado. Vivem bem os dois juntos e acho que talvez até possa vir a dar mais alguns passos nessa direcção.”

Tal como com o jazz, o fado em Júlio Resende é testado nos seus limites. Ou, de um modo mais geral, esse teste é aplica à sua procura pela beleza. Que, em Cinderella Cyborg, o coloca a atrevessar com o som do piano uma série de estilhaços electrónicos à sua volta. Sem tropeçar, sem cair.

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