Ele tinha “os olhos do diabo” e ela os genes de Psico: Halloween voltou e questiona quem é o seu ícone

O filme que consagrou John Carpenter como um dos mestres do terror está (outra vez) de regresso — numa nova versão que pergunta quem é o seu verdadeiro rosto. Michael Myers, o assassino mascarado, ou a sobrevivente Jamie Lee Curtis?

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O realizador David Gordon Green
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Michael Myers, um dos mais famosos monstros do cinema
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Jamie Lee Curtis em Halloween (1978) DR

Halloween faz 40 anos. É mais um produto cultural que se celebra permitindo aos baby boomers e à Geração X voltarem aos lugares onde foram felizes, ou onde tiveram medo, muito medo — e gostaram. Porque gostamos de ter medo, de enfrentar os nossos monstros. Na segurança do sofá ou diluídos na multidão do cinema. O Halloween que agora regressa devolve-nos o ícone da máscara, o assassino puro Michael Myers, mas é sobretudo um golpe de restituição: de amor pelo original de John Carpenter, e de agência feminina. Em 1978, Jamie Lee Curtis foi escolhida por ser a filha de 19 anos do eterno grito de Janet Leigh no mítico Psico de Hitchcock. Agora, é uma mulher com defeitos mas que reage ao seu predador.

Halloween tem um novo herói. O filme mais visto nos EUA nas últimas duas semanas e o segundo mais visto em Portugal desde a sua estreia, a 25 de Outubro, é da heroína Laurie Strode, perseguida há 40 anos por um homem que por trás dos olhos tem “pura e simplesmente o mal”, nas palavras do seu psiquiatra ficcional, Sam Loomis. Halloween, versão 2018, é, para o crítico Peter Travers, da Rolling Stone, “um reboot de um filme slasher para a era #MeToo”.

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Durante anos o filme indie mais rentável de sempre, Halloween é o momento em que John Carpenter se tornou no que hoje conhecemos: um dos mestres do horror. “O efeito de Halloween foi também o de elevar Carpenter a uma espécie de presença omnipotente na produção de um filme de terror, independentemente do nível do seu envolvimento. Halloween deu ao sub-género do slasher film, até certo ponto, o seu estilo de uma câmara que ronda, as posições voyeuristas da câmara, o movimento fluido da câmara, o perseguidor imparável e os adolescentes ameaçados”, escreve Ian Conrich, professor da Universidade de Essex, em The Cinema of John Carpenter: The Technique of Terror (2004). Estabeleceu parte das regras que, em 1996, outro dos mestres, Wes Craven (1939-2015), punha na boca das suas personagens de Gritos. Uma delas diz respeito à rapariga que fica para o fim, cuja fuga é um filme sem fim.

“A ‘final girl’ anda a vencer os monstros dos filmes há tanto tempo que agora é a ‘avó final’. Especificamente, é a Laurie Strode de Jamie Lee Curtis, que regressa para esta nova sequela de Halloween, 40 anos depois do original”, notava há dias Steve Rose no Guardian. É um filme que ignora as nove sequelas anteriores, a maior parte sem Jamie Lee, e em que Curtis é a figura central, novamente a habitante de Haddonfield perseguida pelo homem que é a corporização do mal, que em criança já era a pura ausência de humanidade. Um menino assassino por cujos olhos vemos os seus primeiros crimes (a irmã e o namorado pós-coitais) na primeira sequência, de câmara ao ombro, do Halloween em 1978.

Palavra à “final girl” — conceito cunhado por Carol J. Clover em Men, Women and Chainsaws (1992) — original: “Laurie Strode tinha 17 anos quando foi brutalmente atacada por Michael Myers, um acto de violência aleatório que ficou com ela a vida toda”, contava Curtis na Comic Con de San Diego em Julho. “Ela carregou o trauma e o stress pós-traumático” durante 40 anos, explicava então. Hoje, o filme de David Gordon Green (Pineapple Express — Alta Pedrada) co-escrito com o actor Danny McBride, “honra [o facto de] que com o trauma vem o momento em que dizemos ‘Não sou o meu trauma, a narrativa da minha vida não é que sou uma vítima’, e isso, estranhamente, parece ser uma tendência no mundo de hoje”. Na sua casa preparada como um bunker para o fim dos dias (dele, dela?), Laurie Strode faz eco. Há dias, no site Vulture, John Carpenter, que voltou como consultor para este filme e rearranjou a sua música perfurante, suspirava. “Adoro a personagem dela.”

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Os homicídios das babysitters

Halloween, que continuará a ser visto por estes dias festivos que lhe deram o nome, nasceu como “os homicídios das babysitters”, uma ideia do produtor Irwin Yablans que vinha na esteira dos filmes exploitation que o Psico de Alfred Hitchcock tinha lançado. John Carpenter achou a ideia “horrível". "Mas eu queria fazer mais filmes, por isso disse ‘óptimo!’”, confessou ao New York Times. Está cheio de tributos de um jovem realizador, mas também de alguns clichés sobre a mulher-vítima. Alicerçou-os.

Sam Loomis, o psiquiatra interpretado por Donald Pleasence, é o nome do namorado de Marion Crane em Psico. Jamie Lee estreou-se em cinema por ser filha de Janet Leigh e porque, como diz Stephen King, “a história não se repete, mas rima, e o que normalmente faz é a música do diabo”.

A crítica não o recebeu bem: o New York Times, por coincidir com uma greve, nem escreveu sobre ele, a mítica Pauline Kael, da New Yorker, considerou-o “amedrontamento estúpido” e viu Carpenter como um cábula de Brian de Palma ou Hitchcock. Hoje é um dos filmes mais elogiados do género. Michael Myers era o nome do distribuidor britânico que lançara o filme anterior de Carpenter, Assalto à 13.ª Esquadra (1976), e daria nome a uma personagem que operava nas margens da sociedade. Uma noite, voltava a casa e lançava-se numa onda de crime até encontrar a sua sobrevivente.

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Nick Castle, o estudante de cinema queria acompanhar Carpenter nas fimagens e se tornou Michael Myers, volta brevemente no novo filme

Laurie Strode, que, como Steve Rose analisa, “é, como muitas das final girls de longa duração, tanto uma prisioneira como uma vingadora feminista”, confronta-se com um homem cuja cara mal vemos e que procura desesperadamente uma máscara — por curiosidade, é uma máscara de William Shatner, o capitão Kirk de Star Trek, comprada numa loja de magia em Hollywood Boulevard e pintada a spray e rasgada nos olhos — para, como defendem alguns dos seus muitos analistas, se disfarçar de humano.

Um enigma cuja ausência de explicação o manteve mistificado e originou Sexta-Feira 13 e quejandos, alguém que “é suposto ser uma força da natureza, é suposto ser quase sobrenatural”, como dizia Carpenter em 2016 a estudantes de cinema. Laurie é a babysitter que não está com um namorado nem tem sexo, ao contrário das amigas que encontram a morte às mãos de The Shape, o nome pelo qual também é conhecido Michael Myers, que Carpenter diz não ter desenhado como um castigador da promiscuidade.

Laurie foi escrita por Carpenter e pela produtora e futura activista da igualdade Debra Hill, então sua namorada. Curtis credita-a pela humanidade e empatia que Laurie criou no público, e rejeita críticas sobre o sexismo do filme. Anos depois, em reacção aos filmes gore que exploravam os corpos femininos que brotaram graças a Halloween, os famosos críticos Gene Siskel e Roger Ebert lançaram uma campanha contra essas abordagens, deixando de fora Halloween. “Se o filme prova alguma coisa é que é possível sobreviver à noite… estar ciente de que a possibilidade do mal é uma coisa importante na vida… o mundo pode ser mau e escuro e perigoso, mas com um pouco de sorte e consciência pode-se sobreviver”, defenderia Carpenter em 2003. A actriz Nancy Loomis (a primeira vítima de Myers no filme original, a nua Annie) discorda. “O filme é um óptimo exemplo de onde estava o patriarcado na altura. O facto de John ter dito que isso não foi intencional é a questão. Era a norma”, disse em Outubro ao New York Times.

O sucesso do terror

“A maioria dos críticos concorda que os primeiros filmes slasher incluem uma reacção conservadora contra os valores liberais e a libertação sexual advogada pela contracultura”, escreve Mathias Clasen em Why Horror Seduces. Eram os anos 1970, e a contracultura estava sob ataque de várias formas. Tal como hoje estamos a viver uma era de sucesso do terror, com Foge, o franchise Purga (ambos da Blumhouse, a produtora que agora traz Halloween), Raw, Hereditário ou Quiet Place, bem como The Walking Dead na televisão, Halloween surge numa altura em que Massacre no Texas (1974), Tubarão (1975) ou The Omen — O Génio do Mal (1976) tinham sido êxitos. E num contexto em que Charles Manson tinha feito as suas famosas vítimas, em 1969, e em que os mais famosos serial killers (com direito a filmes condizentes) predavam nas ruas da América.

Halloween 2018 rima então com o Halloween original. Em 1978, Michael era apunhalado no pescoço e hoje, visitado por dois intensos autores de um podcast que o querem escrutinar, ostenta essa marca. Do genérico às conversas de três amigos pelas ruas de Haddonfield no Dia das Bruxas, à aula em que Strode olha pela janela para ver alguém que a espera lá fora, as harmonias sucedem-se. As raízes puritanas dos slasher não são tão visíveis, ou a árvore está de pernas para o ar. Se o terror sempre foi visto como um barómetro do tempo em que é feito e consumido, com monstros para simbolizar a Grande Depressão ou zombies para representar a Guerra do Vietname, este Halloween traz consigo facas afiadas, máscaras, armas várias. E uma(s) mulher(es) preparadas.

“Esta mulher está à espera há 40 anos, encarou a pessoa que sabe que vai voltar para dizer ‘vou recuperar o legado da minha vida, vou resgatar a minha narrativa, e já não és dono de mim’”, disse em Julho Jamie Lee Curtis, a rapariga de 59 anos que agora é o poster do filme. Halloween, filme de terror de culto, como história de amor? “Fez a minha carreira. Fez com que reparassem em mim”, diz John Carpenter ao New York Times, que 40 anos depois publicou a sua primeira crítica ao Halloween original. “Deu-me tudo na minha vida criativa”, reconhece Jamie Lee Curtis.

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