ONG e investigadores pedem debate antes de estratégia para prostituição em Lisboa ser votada

Proposta do PCP deve ser levada a reunião de câmara nesta quarta-feira. Técnicos e investigadores dizem que não foram ouvidos e contestam a mudança. Uma das instituições citadas na proposta pelo seu trabalho de referência não foi consultada e discorda dos princípios.

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NELSON GARRIDO

Um flagelo que é preciso combater ou um fenómeno que é preciso compreender? O debate sobre a prostituição e o trabalho sexual deve regressar à agenda da Câmara Municipal de Lisboa nesta quarta-feira. A proposta n.º 705/2018, através da qual os vereadores do PCP propõem a criação de uma estratégia municipal de intervenção nesta área, chegou a ser agendada para discussão no dia 25 de Outubro, tendo sido adiada. O vereador comunista João Ferreira confirmou ao PÚBLICO que vai pedir que a discussão seja incluída na agenda da reunião de Câmara desta quarta-feira, onde a proposta não consta na ordem de trabalhos.

João Ferreira explica que a estratégia agora apresentada “tem vindo a ser construída há vários meses”, incorporando contributos das várias forças políticas na câmara — “incluindo do próprio presidente” —, com a excepção do Bloco de Esquerda. A fricção entre os dois partidos começou em Abril, aquando da criação da Plataforma Lisboa — Trabalho Sexual, um grupo de trabalho técnico reunido pelo pelouro da Educação e Direitos Sociais (atribuído ao vereador do BE) que agrega associações com contacto com esta realidade.

Uma eventual aprovação da estratégia, contudo, parece precipitada a várias pessoas e organizações que trabalham no terreno e que compõem a plataforma técnica municipal. Nesta quarta-feira, a Rede sobre Trabalho Sexual (RTS) e o Grupo de Interdisciplinar de Investigadores sobre o Trabalho Sexual (GIITS) enviaram a Fernando Medina apelos para que a discussão da proposta em reunião de câmara fosse adiada, permitindo um debate alargado antes da votação de uma nova estratégia.

Constituída em 2011, a RTS agrega associações que estão “em contacto directo com o fenómeno do trabalho sexual”, como a Agência Piaget para o Desenvolvimento (APDES), o Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT) e a Labuta, um grupo recentemente formado de trabalhadoras do sexo. Pedem a Fernando Medina mais tempo para ouvir “as diferentes entidades/organizações com trabalho na área de Lisboa, antes que seja discutida na Reunião da Câmara Municipal”.

Já o GIITS pede “um novo adiamento da discussão”, para “que a sociedade civil portuguesa e comunidade académica sejam ouvidas sobre esta matéria”. Os investigadores reconhecem as “diversas visões de mundo que disputam a verdade sobre esta matéria, algumas a partir de argumentos moralistas e outras a partir dos argumentos dos direitos humanos”, mas alertam que ignorar a produção académica sobre este tema é “desconsiderar o estado da arte da questão, o que pode levar a políticas públicas enviesadas e que não vão ao encontro ao bem comum”.

“Violência sobre as mulheres”

Desde a criação da Plataforma Lisboa — Trabalho Sexual, várias vozes manifestaram a sua indignação com a abordagem proposta pela câmara. O Movimento Democrático de Mulheres, a Plataforma Portuguesa para os direitos das Mulheres e a organização O Ninho promoveram uma petição para que o termo “trabalho sexual” deixasse de ser usado pela autarquia.

Também o PCP se manifestou contra a abordagem e a nomenclatura, que afirma que nunca tinha sido usada até então. É preciso, no entender de João Ferreira, “reposicionar a câmara onde ela sempre esteve”. Considera a prostituição “uma forma de violência exercida sobre as mulheres”, que deve ser combatida “de várias formas”.

Estratégia Municipal de Intervenção na Área da Prostituição, proposta pelos comunistas, prevê a elaboração de um estudo sobre a prostituição em Lisboa, assim como a criação de uma “plataforma de intervenção na área da prostituição e de outras formas de exploração sexual e combate ao tráfico de pessoas”, vocacionada para o apoio às vítimas da prostituição.

Outro dos pontos da estratégia proposta pelos comunistas é o apoio a “instituições com intervenção activa na prevenção e mitigação de situações de carência associadas à realidade da prostituição”. Uma das três instituições mencionadas é a Obra Social das Irmãs Oblatas (OSIO) — que “desde há largos anos tem intervindo de forma continuada junto das mulheres prostituídas em profunda situação de carência” —, que não constava nos primeiros rascunhos da estratégia, a que o PÚBLICO teve acesso nos últimos meses. 

A OSIO, contudo, faz parte das organizações (muitas das quais fazem parte da estrutura criada pela câmara de Lisboa em Abril) que agora assinam a carta da Rede sobre Trabalho Sexual, pedindo para serem ouvidas antes da votação da proposta que ignora o trabalho que tem sido desenvolvido nos últimos meses. Carla Fernandes, directora técnica da Obra das Irmãs Oblatas, confirma que a organização não foi consultada para a elaboração da estratégia. “Tendo em conta a existência desta plataforma, é natural que haja surpresa”, diz.

Questionado pelo PÚBLICO sobre a não auscultação das organizações que trabalham no terreno e que colaboram com a câmara através da Plataforma, João Ferreira justifica que outras ONG foram ouvidas, como o MDM e O Ninho, além das outras forças políticas do executivo camarário. O vereador afirma ainda que as Irmãs Oblatas, apesar de não terem sido ouvidas na elaboração da estratégia, são reconhecidas no documento porque “já trabalhavam com a Câmara Municipal antes da alteração de posicionamento [a criação da Plataforma sobre Trabalho Sexual]”.

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