De sussurro em sussurro até ao sacrifício final

Em Guerra delira com o fantasma sacrificial que se vem mostrando em Lindon nas colaborações com o cineasta Stéphane Brizé. Percurso por quatro filmes em que a intimidade familiar deu lugar à solidão do ícone.

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Os gestos da intimidade, um mundo de interiores (um cinema de interiores) a chegar ao fim: Vincent Lindon com Sandrine Kiberlain em Mademoiselle Chambon (2009)

Há algo de delirante na quarta colaboração deste “casal” de cinema, Stéphane Brizé, realizador, Vincent Lindon, actor: Em Guerra pode ser várias coisas, todas certamente à volta do social e do político, mas podemos também vê-lo como o momento em que uma obra se lança a fantasmar, e a sequência final é exaltada, a partir da persona, que o intérprete ganhou, de homem que representa todos os homens. O filme leva a extremos — de verosimilhança, por isso há perdas para o espectador em termos de empatia e de crença perante esta forma de brutalidade — a faceta missionária em que investe um actor que prefere as pessoas aos actores, que assume a profissão como forma de chegar aos outros e como ajuste de contas com o meio burguês em que nasceu e ao qual devolve os retratos, experiências e vidas dos “outros”: os proletários que encarna.

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Vincent Lindon com Hélène Vincent em Quelques Heures de Printemps (2012)

O dirigente sindical que interpreta em Em Guerra, Laurent, líder das lutas numa fábrica que decidiu fechar, talvez já não seja uma personagem. É uma entidade que absorve e redistribui os desejos e as frustrações do grupo. É o homem-espelho. Há um desapossamento de qualquer intimidade e individualidade, está já para além delas. As cenas familiares não pertencem à convicção do filme. O horizonte de Laurent em Em Guerra só podia ser a aniquilação. É essa a brutalidade de que falamos.

E é aqui que dizemos que o filme parece delirar com o fantasma sacrificial que se vem evidenciando em Lindon nas colaborações da dupla que forma com Brizé (duplos um do outro, o proletário realizador e o burguês actor: Mademoiselle Chambon, 2009, Quelques Heures de Printemps, 2012, A Lei do Mercado, 2015). E delira entusiasmando-se com o fogo-de-artifício. O que faz com que, sendo projecto nascido da convicção de que era necessário um filme para dar conta daquilo a que o espectáculo televisivo não acede, de que era preciso o cinema para ser resgatada a humanidade dos vultos ululantes das “reportagens” dos telejornais, Em Guerra acabe por não constituir alternativa. Faz o seu próprio espectáculo: incendeia-se. Fica a sensação, com travo de calculismo, de uma gestão de trunfos, o maior dos quais é o momentum Lindon, a forma como se intensificaram a missão e o ícone, como se amplificou a notoriedade mediática e a capacidade de abrangência — se Brizé podia afirmar no início “Lindon c’est moi”, para dizer o quanto os unia, entretanto Lindon passou a ser “todos nós”.

Mas não deixa de ser irresistível e até previsível este passo em falso, embora em guerra, que foi da dissidência social, da objecção de consciência moral e ética, ao suicídio. É esse o movimento de A Lei do Mercado para Em Guerra — irresistível e previsível, como tal atingido também pela redundância.

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Vincent Lindon ficou sozinho nos filmes de Stéphane Brizé: A Lei do Mercado (2015) e Em Guerra (2018)
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© 2018 NORD-OUEST

A Lei do Mercado foi um momento extraordinário para os trabalhos de Brizé e Lindon, intérprete que se viu consagrado com o prémio de interpretação em Cannes e o César do Melhor Actor. Sendo aí ainda tudo sussurrado, o mundo interior da personagem, um desempregado a querer regressar ao mercado de trabalho, era ameaçado de exposição, o privado violentado pela esfera pública, os silêncios importunados. O actor Lindon colocava-se mesmo “em perda” perante o saber e o domínio da linguagem dos “não-actores”, os verdadeiros desempregados com que Brizé o misturou no filme — aí , saindo da “bolha” do cinema, ganhava foros de concretização apoteótica a empatia de Vincent pelas “pessoas simples”. As primeiras sequências davam a ver a ruptura: expunham-se, ameaçavam-se os interiores que tinham sido trabalhados como memória e histórias em Mademoiselle Chambon e Quelques Heures de Printemps — filme em que Lindon, camionista, diz às tantas “on doit pas tout se dire”, reserva que se lhe conhece e que é brutalizada em A Lei do Mercado (as sequências de dança deste filme continuam a parecer a tentativa de controlo e violentação de uma individualidade... ).

Naqueles dois títulos iniciais da relação Brizé/Lindon, o actor, já vedeta em construção (Welcome, de Philippe Lioret, decisivo nessa deriva, é de 2009), deu versões sussurradas de si mesmo. (Já que assume o seu gosto por Jean Gabin... é como as versões sussurradas de Gabin em Gueule d’Amour, 1937, e Remorques, 1941, de Jean Grémillon...) Revendo-os hoje, mantém-se a forma delicada como Brizé se expande pelos gestos e pela intimidade, mas evidencia-se sobretudo um mundo de interiores e familiar (um cinema de interiores) a chegar ao fim, ameaçado do exterior pelo social e pelo político. O património das personagens acabava, a morte em frente ou ao lado: num filme um pai escolhe o seu caixão, no outro uma mãe escolhe o suicídio.

Mademoiselle Chambon é “a história” do encontro impossível entre uma professora e um carpinteiro — as dificuldades com o domínio da linguagem, sequência inicial, serve de apresentação da “personagem” Lindon tal como a passaríamos a conhecer. Lindon e Sandrine Kiberlain tinham sido anos antes um casal “na vida real”. Foi escolha arrojada de Brizé, e um desafio aceite pelos dois actores, dar-lhes os gestos de ternura e desejo de um casal de mundos diferentes que não se chega a formar. Era uma forma de, com eles, ser eternizado o fim.

Quelques Heures de Printemps faz-se memento mori: Lindon, saído da prisão e a tentar (já aí) reingressar no trabalho, regressa a casa da mãe (espantosa Hélène Vincent, contraponto áspero à música de Nick Cave e Warren Ellis). Esta, com um tumor cerebral, decide avançar com os protocolos de suicídio assistido. “Há um momento em que é preciso admitir que é o fim”. Mesa de refeições, compotas, um cão e os duelos pelo espaço, as memórias de violência familiar... depois disso, depois da expansão, depois do “je t’aime mon garçon”, Vincent Lindon ficou sozinho, isolado, nos filmes de Brizé. E agora é mesmo um ícone, sem espaço para a intimidade.

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