Dupla à sombra de Lovecraft e Carpenter

Com O Interminável, a dupla americana Aaron Moorhead e Justin Benson constrói um inquietante pesadelo faça-você-mesmo, rodado sem dinheiro e com amigos, inspirado por gente tão díspar como Steven Soderbergh, John Carpenter ou William Friedkin

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Benson e Moorhead interpretam os irmãos Justin e Aaron, a que deram os seus próprios nomes, numa opção que vai de encontro à ética “faça-você-mesmo” da dupla

“Quando me costumavam perguntar qual era o filme que me tinha dado vontade de fazer cinema, eu respondia com Parque Jurássico,” diz Aaron Moorhead ao telefone de San Diego, Califórnia. “A aparição do T-rex era assustadora. Mas no outro dia voltei a ver o Veio do Outro Mundo do John Carpenter, e trouxe-me muitas memórias de eu ficar autenticamente paralisado enquanto o via. Não foram os efeitos especiais que me levaram a querer fazer filmes de terror. Foi mais a sensação de isolamento, de paranóia e terror, e aquela pergunta muito Lovecraftiana: «porque é que um helicóptero há-de querer assassinar um cão que corre pela Antárctica fora?».”

É uma pergunta que pode ser transposta – sem cães nem helicópteros – para a terceira longa-metragem realizada em conjunto por Moorhead (n. 1987) e pelo seu melhor amigo e cúmplice criativo Justin Benson (n. 1983), O Interminável, esta semana nas salas portuguesas depois de ter passado pelo MOTELX em 2017. Dois irmãos escapam em adolescentes a uma misteriosa seita algures no deserto americano, que os salvou de um acidente de carro em que ficaram órfãos. Agora adultos, sobrevivendo como podem, Justin quer recomeçar do zero e esquecer o passado, mas Aaron, desencantado com a vida que levam, pergunta-se se não teriam ficado melhor servidos com a vida sossegada que levavam no “culto”. Um dia, chega uma cassette de video, como se fosse uma carta do passado. E a pergunta: porque é que, depois de terem escapado, Aaron e Justin hão-de regressar ao culto, mesmo que seja só para o visitar?

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A resposta não se revelará aqui, porque equivaleria a um imenso spoiler que dura toda a projecção do filme. O que podemos revelar é que não há efeitos especiais de encher o olho, nem muito sangue. Apenas sugestão, perguntas, respostas, dúvidas, dentro de uma lógica que evoca H. P. Lovecraft (1890-1937). O escritor americano conhecido pelo seu terror cósmico e alienante parece estar a ter um momento de reavaliação por parte de muito boa gente – nos últimos tempos, Panos Cosmatos (Mandy) e Pascal Laugier (Ghostland) invocaram abertamente Lovecraft, enquanto Guillermo del Toro teve que abandonar o seu projecto de filmar Nas Montanhas da Loucura. “Não somos muito conhecedores de Lovecraft, mas muitos dos autores que lemos inspiraram-se no seu trabalho,” confessa Moorhead. Mas parece que todos os anos há dois ou três filmes no circuito dos filmes de terror que são «Lovecraftianos», só que geralmente as pessoas dizem isso porque há monstros com tentáculos! Para mim, Lovecraft tem mais a ver com uma sensação avassaladora, de sermos minúsculos e impotentes num mundo que é muito diferente do que esperávamos que fosse e que as ciências e a matemática não conseguem realmente explicar. E não há muitos filmes assim.”

Ainda assim, tal como o universo dos “seres antigos” e o “mito de Cthulhu” percorriam os livros do escritor, também os três filmes de Benson e Moorhead estão interligados – Resolution (2012), Spring (2014) e O Interminável passam-se num mesmo universo narrativo, correspondendo no entanto a histórias inteiramente independentes. Moorhead é muito peremptório a explicar que os filmes nascem sempre a partir de uma ideia específica. “Nada foi premeditado! Resolution originalmente nasceu da ideia de estarmos a ver um filme e percebermos ao pouco que a história estava a ser contada do ponto de vista de «algo». E quando demos por nós, estávamos a criar um mundo muito maior do que apenas essa história. Depois, Spring tornou-se numa história de amor porque implicava dar uma criança à luz, e isso implicava que as personagens se apaixonassem. Para O Interminável temos de admitir que foi o universo que apareceu primeiro, porque a sua narrativa corre em paralelo com Resolution. Não existe bem uma palavra que descreva o modo como estão interligados, mas se não se tiver visto o outro filme não se percebe que existe uma ligação...”

Sem revelarmos muito, teremos de dizer que uma dessas ligações é a presença como actores, em ambos os filmes, de Benson e Moorhead. São eles quem interpretam os irmãos Justin e Aaron, a que deram os seus próprios nomes, numa opção que (para lá de criar uma ligação com Resolution) vai de encontro à ética “faça-você-mesmo” da dupla: não apenas actores e co-realizadores do filme, mas também co-montadores, com Benson a assinar o argumento e Moorhead como director de fotografia. Fizeram-no como reacção à sua dificuldade de “subir de patamar”, como diz Moorhead. “Sentíamo-nos frustrados por não conseguirmos montar um projecto mais ambicioso, e por isso decidimos fazer um filme que pudéssemos fazer o mais possível sozinhos, onde não tivéssemos obstáculos a impedir-nos de fazer o que queríamos. Concebemos tudo para usar exteriores aos quais sabíamos que iríamos ter acesso, com actores que sabíamos estarem disponíveis, com efeitos especiais que soubéssemos fazer sem ter de encomendar fora.”

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Justin Benson admite que a questão da sobrevivência é um dos grandes imbróglios contemporâneos da produção independente nos EUA. “A tecnologia e a distribuição chegaram a um ponto em que é possível fazer um filme com 200 mil ou 500 mil dólares, e há muita gente a fazê-lo,” raciocina. “Dá para ganhar a vida? Não. Provavelmente é preciso ter um segundo emprego. Mas a verdade é que fazer um filme é um privilégio enorme, é muito gratificante. A vantagem de fazer um filme com pouco dinheiro é que as pessoas estão mais dispostas a arriscar e a fazer algo novo. Por outro lado, adorava ver alguém dar 30 milhões de dólares ao Jeremy Saulnier para fazer um filme...”

A referência a Jeremy Saulnier, o autor de Ruina Azul e Green Room, não é casual. Benson e Moorhead fazem parte de uma geração de cineastas independentes americanos que tem conseguido impôr-se com filmes originais que dão a volta às convenções do género, feitos fora do sistema por pouco dinheiro – gente que tanto abarca Saulnier como Sean Baker (The Florida Project) ou os irmãos Safdie (Good Time), David Robert Mitchell (Vai Seguir-te) ou Shane Carruth (Primer). Quando falamos das semelhanças de O Interminável com o trabalho de Carruth, verdadeiro OVNI do circuito independente que realizou duas longas praticamente sozinho e com orçamentos inexistentes, Moorhead confirma que o seu nome é uma inspiração. “As ideias interessantes não custam dinheiro, as personagens interessantes também não. É por isso que gente como o Shane, ou o Steven Soderbergh, ou os irmãos Duplass são inspirações: pegam na câmara e decidem-se a contar uma história ambiciosa, mas sempre centrada nas personagens, contando histórias humanas no interior de uma ideia maior e muito mais interessante.”

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É por aí, também, que a dupla se inscreve numa linhagem de cinema de género, particularmente viva na actual produção independente americana e que vai atrás, aos primeiros filmes de George Romero ou Wes Craven. “Não temos problema nenhum em ser considerados cineastas de género,” explica Benson. “É até bastante elogioso, porque o terror tem uma grande tradição e um espírito faça-você-mesmo muito forte. A questão é que nunca decidimos fazer um filme de acordo com as regras do género, qualquer que ele seja. Todos os nossos filmes tentam fazer o espectador sentir-se inquieto, desconfortável, mas sem usar nenhuma das convenções dos filmes de terror. Não temos sustos que façam o espectador saltar na cadeira nem muita violência no écrã. Estamos sempre a tentar assustar as pessoas de maneiras pouco convencionais.”

Voltamos às inspirações: se Aaron Moorhead cita Spielberg e Carpenter, Justin Benson fala de ter visto no liceu Massacre no Texas de Tobe Hooper. “Lembro-me de pensar que havia algo de indescritivelmente aterrorizante naquele filme. E também de achar que conseguia perceber como é que ele tinha sido feito.” E fecha conversa com... O Exorcista de William Friedkin: “É um filme verdadeiramente aterrorizante. As pessoas dizem, «ah, é o filme em que a miúda é possuída pelo Diabo», mas não é nada disso, ela é possuída por algo que não sabemos o que é, uma força misteriosa e antiga que é universal, que é anterior a todos os rituais.” Algo de Lovecraftiano, em suma. Como o que Moorhead e Benson procuram invocar em O Interminável.

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