Soria, a província que já merecia um filme

É terra de namorados, poetas, cogumelos e do Douro. Soria tem o legado de Numância, de Antonio Machado e cruza-se muito com Portugal. Quem lhe faz justiça?

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Em Numância, nos arredores de Soria, reconstitui-se a história do cerco romano e da resistêncai celtibera que durou 20 anos Jorge Sanz/Pacific Press/LightRocket via Getty Images

Estamos em 153 antes de Cristo. Roma domina a Hispânia. Toda? Não! Uma aldeia de irredutíveis celtiberos resiste ao invasor. Numância recusa-se a cair nas mãos do império. A história numantina já merecia um filme. Como ninguém lhe pegou até agora, Ruben García e Eduardo Torres meteram mãos à obra. E fizeram uma banda desenhada.

Fast forward dois mil anos e eis que estamos em Soria, capital de província, a nove quilómetros das ruínas de Numância. Ruben e Edu não se limitaram a uma BD. Pegaram na história numantina e transformaram-na num conceito “mais amplo”: uma editora, uma loja de recuerdos, “um projecto cultural” a que deram o nome de Numanguerrix.

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Plaza Mayor de Soria, com a Fonte dos Leões DR

Fica ali na pequena Calle del Arco Cuerno, que liga a Plaza Mayor de Soria (onde se encontra a sede da câmara, a Fonte dos Leões, e a igreja de Santa María la Mayor – um templo católico com restos romanos e uma abside do gótico tardio) à Calle Zapatería. A loja Numanguerrix fica à esquerda de quem desce este pequeníssimo arruamento. “Somos o turismo não oficial de Soria”, diz Ruben, ex-vendedor de seguros que mudou de ramo para se dedicar “à divulgação de Numância para lá de Numância”.

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“É preciso que esta história seja conhecida, difundida. Pegámos numa iconografia tão clara e demos-lhe vida, movimento”, explica. A Numanguerrix tem cinco anos. A loja apenas um.

O primeiro exemplo desse esforço está à vista: parte do tecto está decorada com A Criação de Adão, a famosa pintura de Miguel Ângelo. Mas Ruben e Edu deram um twist no original que se encontra na Capela Sistina, em Roma. 

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"A Criação de Adão" com um "twist" soriano: no tecto da Numanguerrix encontra-se um resumo histórico de Soria Ruben García e Eduardo Torres / Numanguerrix

Onde o mestre italiano rodeou Deus e Adão de anjos, personagens e cenas inspiradas no Velho Testamento, Ruben e Edu espalharam poetas (Antonio Machado e a mulher Leonor) e reis (Afonso VIII), mouros (Al-Nasir) e romanos (Cipião Emiliano), sorianos famosos e ícones da gastronomia local, como o porco. Mesclaram o traço dos guerreiros numantinos com os ingénuos desenhos que as crianças espanholas aprendiam na escola, com a ajuda de uma lengalenga popular – "com um seis e um quatro sai-me o teu retrato" [Curiosidade? Há um vídeo que explica]. O resultado é a imagem de marca da Numanguerrix, cuja vertente de negócio é menos relevante do que o lado artístico, divulgador do essencial para compreender este quinhão de terra e as suas gentes.

"Soria tem luz e tem sombra. Mais sombra do que luzes, infelizmente", sintetiza Ruben. Que algo não vai bem percebe-se assim que se tenta chegar à cidade. A ligação por comboio directo de Madrid até Soria é insuficiente. E não há uma auto-estrada completa até à capital autonómica, Valladolid – o que até viola a lei espanhola, sublinha Luis Ulargui, jornalista, comunicador, marketeer, natural de Soria, habitante de Madrid. E quando se chega ao destino (a melhor opção acaba por ser o carro), basta olhar para as janelas da Calle el Collado, rua principal da cidade, onde abundam faixas, cartazes e bandeiras com duas frases de ordem: "Soria quiere futuro" e "Soria Ya".

"Somos a ponta da cauda do rato", graceja Ruben García, aludindo a coisa muito séria e grave: as consequências de décadas de desinvestimento. É esta a tal "sombra" de que ele falava antes. A escuridão "principal" – afirma – "é o despovoamento e a falta de oportunidades para os jovens". "É como uma sombra de Mordor, que afecta tudo e todos." 

Documentário com animação 3D (narrado em espanhol; pode activar legendas em inglês)

Para um estrangeiro que chegou há quatro dias, é difícil de compreender este ostracismo. Porque a pouco mais de uma hora de distância de Madrid está a Soria dos poetas grandiosos (Antonio Machado, Gustavo Becquer e Gerardo Diego), a Soria dos namorados e da natureza imponente; a Soria dos cogumelos e das trufas, dos vinhos Ribera del Duero, do torresmo mais famoso do país e da manteiga mais gostosa de Espanha, a Soria de restaurantes com estrelas Michelin e do cordero lechal ou lechazo; a Soria de São Satúrio e Frei Tomás de Berlanga, o descobridor das Galápagos; a Soria românica e romana, com o Museu Numantino na cidade e as ruínas do que restam de Numância ali num morro ao lado de Garray (a oito quilómetros).

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Representação história da vida em Numância DR

É longa a lista das razões por que Soria merece futuro. "Castela miserável, ontem dominadora, envolta nos seus trapos, despreza tudo o que ignora", escreveu Antonio Machado no poema A orillas del Duero. Natural de Sevilha, Machado viveu em Soria, apaixonou-se em Soria e apaixonou-se por Soria, onde escreveu muito (poesia, dramaturgia) antes de morrer em França. Seria justo conhecer melhor, como ele fez, esta província – até porque o que a liga a Portugal vai muito para além do Douro, que nasce ali, nos Picos de Urbión.

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Picos de Urbión, berço do rio Douro, é uma paisagem de cortar a respiração DR

"Como costumamos dizer aqui em Espanha, se houvesse disto noutro país, já teriam feito filmes, séries e parques temáticos", escrevem os autores da BD Aius – O destino de Numância, que abre com um  prólogo de Antonio Chaín Galán, da equipa arqueológica de Numância. Soria já merecia um filme, tal como Manoel de Oliveira imortalizou o Douro do PortoSoria Ya, dizem eles. Venham daí. Acção!

A dignidade antes de tudo

Viajar é crescer. "Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura...", escreveu Pessoa, n'O Guardador de Rebanhos, que assinou como Alberto Caeiro. Fazê-lo em Soria é, além do mais, tropeçar em pedaços de história de Portugal. É ver quão longe se estendem os nossos braços.

Reza o livro En torno a Castilla (2009), de Carlos Moreno Hernandez, que na Batalha de Aljubarrota (1385), havia sorianos a defender Castela. Perdeu a batalha D. João I (o de Castela), como se sabe. E todos os sorianos que enfrentaram portugueses perderam a vida. Ficaram para a história como os "Leais de Aljubarrota" e figuram assim na toponímia soriana. Porém, um deles sobreviveu. E regressou a casa. Acabaria por ser morto pelo próprio pai. Se a morte de um filho era o selo da lealdade, a família deste infeliz não quis destoar dos vizinhos.

Como se vê, o cerco romano a Numância (já lá vamos) não é a única história que alia tragédia e vontade de ser digno. Talvez seja o caso mais impressionante – até para os historiadores clássicos greco-latinos de Roma como Tito Lívio, Cícero, Apiano – porque a resistência ao invasor durou 20 anos. Mas na mesma província, um pouco mais distante de Soria (102 km), há a registar o caso de Termes, povoado que deu mais 35 anos de luta após a queda dos numantinos.

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As ruínas de Numância são testemunho da vida de povos ancestrais da Hispânia DR

Com tanta riqueza histórica, acaba por ser difícil escolher por onde começar. "Caminhante, não há caminho. Faz-se o caminho ao andar", escreveu Antonio Machado. Também ele glosou, como Pessoa, questões de estatura na poesia ("Nunca percas o contacto com o chão, porque só assim terás uma ideia da tua estatura"). Também ele, como Pessoa, tem uma estátua que o representa sentado num espaço público da cidade onde viveu. Por isso, mais vale começar pelo mapa e perceber por onde se vai meter os pés.

A cidade de Soria é a capital da província com o mesmo nome, uma das nove que fazem parte da comunidade autónoma de Castela e Leão. Esta é, por sua vez, uma das 17 comunidades autónomas de Espanha, a maior em área (20% do território continental, 94 mil km2 – o que ultrapassa a área de Portugal). Com capital em Valladolid, Castela e Leão é a sexta maior comunidade em população (2,42 milhões de habitantes), mas, dada a grandeza geográfica, tem um dos valores mais baixos em densidade populacional (26 habitantes por km2).

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Cañon del Rio Lobos DR

Como província (90 mil habitantes e em queda) e como cidade (inverteu timidamente a tendência decrescente em 2017 e tem 39 mil habitantes), Soria fica na ponta oriental de Castela e Leão. Faz fronteira a norte com Burgos e Logroño, a este com Saragoça, a sul com Guadalajara e a sudeste com a província de Segóvia. Soria, porém, é um espelho que distorce para pior a imagem do despovoamento. Aliás, é a segunda capital de província menos povoada em toda a Espanha (mais deserta só mesmo Teruel, em Aragão). É preciso rir deste facto, como Ruben García, para não ficar siderado com os números. "Somos a Lapónia do Sul da Europa", diz ele.

Porém, o que lhe falta em humanos sobra-lhe em paisagem natural – e que paisagem – e biodiversidade. No extremo noroeste de Soria, é de passar pelo sítio onde nasce o Douro, que banha os principais povoados e serpenteia a província para sul até se curvar para Ocidente. Para chegar ao berço é preciso ir em direcção a Duruelo de la Sierra, a 53km de Soria. E depois encontrar a vertente meridional de Picos de Urbión, a 2160 metros de altitude. Estas são as serras mais elevadas do Sistema Ibérico, cordilheira que limita a Meseta Central. Não é para quem fraqueja do coração, dos pulmões, das pernas ou se dê mal com a altitude e o frio (sobretudo no Outono e Inverno). 

Pode-se fazer uma rota pedestre (dificuldade média), por 11,7 km (oito horas) e vencendo um desnível de 628 metros para ir até outro ponto obrigatório nesta região, a lagoa Negra. De origem glaciar, fica em Pinares, ali onde fazem fronteira os municípios de Vinuesa, Covaleda e Duruelo de la Sierra.

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Lagoa Negra, nos Picos de Urbión DR

É objecto de todo o tipo de lendas, uma das quais foi glorificada por Antonio Machado, segundo o qual a lagoa não teria fundo. A profundidade máxima anda de facto entre os oito e os 12 metros. E se sair dali sem forças, regresse rapidamente a Soria, passe pela Pastelaria Nueva York e abasteça-se da manteiga de Soria, apreciada em toda a Espanha. Seja na versão doce (com açúcar), salgada ou neutra, cada embalagem tem calorias suficientes para despertar um morto.

Soria é um paraíso para caminhadas e montanhistas. Se no Verão o clima quente e seco exige preparação, o Inverno desaconselha grandes aventuras noutro sítio muito popular, o Parque Natural del Cañon del Rio Lobos. Cañon em castelhano, canyon para ingleses, desfiladeiro ou garganta sinuosa em português, pacientemente criado pela erosão das águas do rio Lobos. É mais ou menos equidistante da nascente do Douro e da cidade de Soria, ficando 57km a oeste desta cidade.

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Berlanga de Duero, com o castelo em fundo DR
Catedral de Berlanga DR
Arcos de São João, em Soria DR
Arcos de São João, em Soria DR
Castelo de Berlanga JL Bravo
Castelo de Osma DR
Casa celtibera reconstruída em Numância DR
Plaza Mayor em Soria DR
Rio Douro nasce nesta província DR
Ermida de São Satúrio, um dos locais mais bonitos de Soria DR
Ermida de São Baudélio DR
Uma paisagem natural marcante por toda a província DR
Ermida de São Bartolomeu, no Parque Natural del Cañon del Rio Lobos DR
Vista sobre os campos desde o castelo de Gormaz DR
Um dos abutres no parque natural de Rio Lobos DR
Uma réplica de um apatosauro é uma das atracções de uma região marcada por muitos vestígios fósseis daquela era DR
Míscaros de Soria. A província é popular pelos cogumelos DR
Numância DR
Cañon del Rio Lobos DR
Picos de Urbión, onde nasce o Douro DR
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Mikel Bilbao/Getty Images

Festim da natureza

O Outono e a Primavera são as melhores épocas para subir (ou descer) o trilho de 25 quilómetros, que liga (na cota mais baixa) a nascente do rio Ucero (950 metros acima do nível do mar), em terras sorianas, à localidade de Hontoria del Pinar (1100 metros de altitude), já na província vizinha de Burgos. Quem não gosta de enchentes, deve evitar a visita a 24 de Agosto, dia de grande romaria religiosa com epicentro no parque. 

Partindo de baixo, o primeiro trecho são 8,2 quilómetros (três horas) até à primeira paragem, em Siete Ojos (a ponte marca a fronteira com Burgos). Pouco depois de começar a conquista deste desfiladeiro com elevadas paredes verticais de rocha calcária, chega-se a dois pontos mágicos: a ermida de San Bartolomeu e a gruta grande. A ermida é um dos pouquíssimos elementos humanos do parque e integra-se na perfeição na paisagem.

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Construída no início do século XIII, em estilo românico tardio, a ermida estava ligada à Ordem dos Templários. Está rodeado de lendas e símbolos esotéricos – a estrela de cinco pontas numa das janelas foi adoptada como logótipo do próprio parque. Segundo explica Pilar Arranz, guia turística na região, "abundam em Ucero as referências aos cavaleiros templários, desde logo por causa do castelo que lhes pertencia" e que se situa no alto de uma colina.

Depois da ermida (visitável, mas actualmente em obras de conservação), chega-se à gruta grande. É um dos locais preferidos para fotografias. Numa das paredes à direita há desenhos rupestres da Idade do Bronze. São representações antropomórficas, arboriformes, linhas e ângulos. Foram gravadas por incisão na rocha, apresentando sempre traço único, ao contrário do que se vê na gruta pequena, onde os desenhos na rocha são ângulos agrupados e sempre com traço duplo.

Aos espeleólogos recomenda-se a rota que vai dali ao Miradouro da Galiana. Paragem obrigatória, para recuperar fôlego e perdê-lo logo a seguir com as vistas da vegetação que aproveita pequenas fissuras nas rochas para medrar (medronheiro, vermiculária ou uva de cão, erva-pimenteira, rosmaninho-maior, alecrim, tomilho-vulgar ou sal-puro, entre muitas outras).

Também se detectam fósseis de ostras e, bem mais visíveis, árvores que cobrem as paredes íngremes com as cores da estação. Zimbros, pinheiros-larícios, azinheiras, carvalho-cerquinho, carvalho-roble, choupo negro, salgueiro-branco, vimeiro-preto.

Há abutres-do-Egipto a cruzar os céus e outros pássaros que podem ser avistados ou ouvidos: águia-real, falcão-peregrino, corvo, gralha-de-nuca-cinzenta, gralha-de-bico-vermelho, guarda-rios, andorinhão-real, rabirruivo-preto, andorinha-das-rochas, pombo-comum (ou doméstico). Regra número um: deixe-os em paz. Aos pássaros e à restante comunidade: javalis, corços, rãs-verdes, trutas, peixes-boi (da família das carpas), barbos-espanhóis, verdemãs-do-norte, morcegos (muitos) e abutres-fouveiros (o mais comum nestas paragens). Um festim.

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O parque tem cerca de 1400 hectares (equivalente a 2000 campos de futebol). Para os carros, há três zonas de estacionamento (um deles gratuito), junto ao Ucero. Vale a pena começar pelo centro de interpretação que recorre ao 3D e à realidade aumentada para desvendar segredos e riquezas naturais. Um senão: só tem materiais explicativos em castelhano. 

Capital dos cogumelos

Depois disto, para descansar, o melhor é rumar para sul. De carro, quase em linha recta, são 15 minutos (17,5 km) até El Burgo de Osma, até ao hotel Castilla Termal Burgo de Osma, um quatro estrelas que ocupa um imóvel da Universidade de Santa Catalina (do século XVI). Porquê este? Pela piscina termal, com águas mineromedicinais e diferentes tipos de jacuzzis. Cada jacto, cada borbulha de água, cada canhão ou cortina de águas será uma bênção.

A piscina termal (há outra, no exterior) fica no piso -2, por baixo do pátio renascentista da antiga universidade. As águas surgem à temperatura de 18,7º, são oligometálicas bicarbonatadas cálcicas hipotermais e de mineralização média. Mas isso não interessa nada. O que conta é que fica-se tão zen que só se sai dali arrancado a ferros.

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Meio milhão de turistas micológicos passaram por Soria em nove meses DR

Se a visita for feita no Outono (como foi o caso da Fugas), pode contar com fungos no prato. Que ninguém se assuste: ou são cogumelos ou são trufas. Soria, cidade dos namorados, cidade de poetas, é uma das capitais europeias da micologia. "Desde Janeiro até agora, mais de meio milhão de turistas rumaram a Soria à procura destes alimentos", revela a conselheira-delegada (uma espécie de ministra regional) que tutela o Turismo no governo autonómico de Castela e Leão, Maria Josefa Salgueiro.

Fernando Martínez-Peña é uma autoridade em matéria de micologia. E ademais um cientista atento. Revela-nos que Soria está de mãos dadas com Bragança num projecto que se candidatou a fundos comunitários para desenvolver o chamado turismo micológico. Uma parceria que pretende obter 1,3 milhões de euros e que inclui mais cidades de Espanha e de França.

Apanhar cogumelos é uma actividade regulada, requer uma autorização: nas primeiras três semanas de Outubro, foram concedidas 400 autorizações por dia, em média. Nos dias 22 e 23, a cidade foi palco da sexta edição do congresso Soria Gastronómica, encontro bienal dedicado a explorar o mundo do cogumelo e da trufa. Há três anos que a produção de cogumelo tem sofrido com o tempo seco. "São consequências das alterações climáticas", atesta Martínez-Peña, que coordena o Instituto Micológico Europeu. Quanto às trufas, há uma dezena de produtores locais que se ocupam de extrair duas variedades, a trufa de Verão e a trufa de Inverno. Um mimo da gastronomia cujo destino comercial é fundamentalmente França. Vale a pena embrenhar-se pela Reserva Micológica, para compreender o elevado valor económico que o cogumelo representa para a região. E ficar a conhecer a multiplicidade de espécies que, mais tarde, poderá encontrar no prato – ou não, quando não é comestível.

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Burgo de Osma, com o rio Douro e o castelo em pano de fundo DR

A maioria das centenas de milhares de pessoas que todos os Outonos demandam Soria acabam mesmo por só os ver no prato. Dois locais, dois expoentes: a Casa Vallecas, em Berlanga de Duero, e o restaurante BaluArte, do chef Oscar García (uma estrela Michelin), em Soria. Ambos propõem menus de degustação em oito andamentos centrados no cogumelo.

Anote: caldo dashi de cogumelo (entrada); gaspacho com gamba branca e míscaro; escabeche emulsionado com codorniz e cavala marinada em sal; raviolis de batata doce e foie com creme de cogumelo boleto; revuelto de cogumelos com carpaccio de pancetta ibérica; calamares em tinta com cogumelo orelha-de-morcego (também conhecido como trompeta-da-morte) en pepitoria (guisado com gema, ovo e amêndoa moída); tamboril com polpa de couve-flor a la romana (panada com farinha e ovo e frita) e cogumelo boleto; pá de cordeiro lechal com cogollo (alface pequena e acre) em kimchi natural de água de cogumelo boleto; pêssego, amêndoas, canela e cogumelo cantarelo (sobremesa); castanhas, café, chocolate e cogumelo trompeta (sobremesa).

Por 64 euros (bebida não incluída), é isto que o chef Oscar García põe na mesa na semana gastronómica de Soria. Não será para todas as carteiras, mas quem pode arriscar pode aumentar a proposta de valor se acompanhar aqueles pratos com um tinto Finca de La Nación 2010, da casa Rudeles, um dos muitos vinhos de denominação de origem Ribera del Duero. Ou com um Crianza (vinho com pelo menos um ano de envelhecimento em barril de carvalho), como o La Celestina 2015, da casa Dominio de Atauta, que amadurece 12 meses em carvalho francês. Ou, saindo para os brancos, um José Pariente 2016. Mais jovem do que os anteriores, feito a partir de uvas Verdejo e fermentado em barril, resultando num sabor fresco, bastante frutado e cítrico.

Cozinha de aproveitamento

São versões refinadas do que Yeyo Rubin de Celis e Antonino Andrés Verdasco se habituaram a ver nas cozinhas domésticas de Castela e Leão. Embora sejam ambos de Santander (Cantábria), são clientes habituais da gastronomia soriana. "A cozinha de Soria é de aproveitamento, feita daquilo que havia nas casas de um povo que se distingue por ser muito trabalhador", diz Yeyo Rubin de Celis, que trocou décadas de trabalho na banca por uma nova vida na cozinha e nos media. Em pequeno, ajudava no restaurante dos pais. Agora auto-intitula-se comunicador gastronómico. Entra em casa de muitos espanhóis, pela rádio e pela televisão, graças a programas sobre a cozinha espanhola.

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Porta Califa no Castelo de Gormaz DR

Essa raiz campina, operária, da alimentação soriana fica bem patente na carta do restaurante El Lagar de Isilla, em Aranda de Duero. Começa-se com uma sopa castelhana (quatro ingredientes: alho, caldo ou água, ovo e pão) e segue-se para a "vedeta" local, o cordero lechal ou lechazo. É a versão cordeiro do leitão, morto aos 21 dias e posto no forno sem nenhuma espécie de tempero. Em vida, o cordeiro é alimentado apenas pela mãe. Pesa, em média, cinco quilos, é primeiro cortado em quartos, cozinha durante 2h15 a 2h30 em forno a lenha (madeira de azevinho) e serve-se acompanhado apenas com alface. A carne desfaz-se como gelatina em dia de Verão.

"A carne e os legumes são a base desta gastronomia. A cozinha soriana assenta no animal do campo, no que vem das ganadarias, nas hortas e, claro está, nos cogumelos, sem esquecer o torresmo [porco], que aqui atinge o esplendor máximo", explica Yeyo. "O facto de não terem zona de costa não é nenhuma contrariedade. A Galiza está a três horas, por exemplo. Antigamente demorava-se mais, e por isso havia uma maior presença de peixes curados em sal, como o bacalhau. Mas as pessoas daqui valorizam o produto da terra. E têm razões para isso."

Já nos vinhos, Antonino Verdasco, professor de hotelaria desde 1979, director da associação de sommeliers de Cantábria, destaca três produções, que "agora se vendem melhor". Não é apenas uma questão de marketing, salienta, embora admita que os produtores locais "fazem melhor comunicação". "Sempre ouvi dizer que os melhores vinhos estão nas bacias hidrográficas dos melhores rios. E se olharmos para Espanha vemos a bacia do Ebro, que demarca uma região importante como La Rioja, Priorato ou Tarragona", descreve. "Com o Rio Douro, acontece o mesmo." 

"O Douro desenha uma região de vinhedos. Começa em San Estebán de Gormaz, com a Ribera del Duero [denominação de origem protegida], que se alarga aos afluentes, como Cigales, Rueda, a Ribera de Arlanza e continua com os vinhos de Toro estendendo-se até Zamora e Portugal, onde, como sabem, há magníficos vinhos a serem produzidos sob influência desse mesmo rio."

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O Douro influencia a economia e toda a paisagem humana e agrícola de Soria DR

O tipo de solo e o clima dão uma importante ajuda, aponta Antonino Velasco – "muito calor no Verão e muito frio no Inverno, com uma grande amplitude térmica entre noite e dia". "Isso é muito importante para a qualidade do vinho, porque determina que a maturação da uva e a concentração de aromas no vinho são muito mais interessantes", explica, elegendo duas regiões vinícolas de Soria como referências actuais. "Por um lado, nos vinhos brancos temos os Rueda, que deram um salto tremendo, com a uva Verdejo como standard, ou a Sauvignon Blanc, que também se dá muito bem aqui. Por outro lado, e mais importante ainda, temos os tintos Ribera del Duero. São muito relevantes neste momento, em Espanha e em mercados internacionais. A estes acrescentaria os rosados e tintos magníficos de Cigales, uma região que tem vinhas com idades mínimas de 40 ou 50 anos", conclui.

Paixões de poeta

Uma das particularidades do sector da restauração de Aranda de Duero (a sul de Soria) é o aproveitamento das antigas caves vinícolas. No passado, serviam a produção do vinho nesta terra que se orgulha de ter um dos primeiros mapas urbanos de Espanha (1503). Hoje, algumas dessas caves são galerias museológicas que se podem visitar após uma refeição. Se fizessem o mapa delas, perceber-se-ia que algumas estão ligadas, como uma rede de canais subterrâneos.

Saindo de Aranda para leste, chega-se a Berlanga de Duero. Pelo meio, convém parar no castelo de Gormaz, que começou a ser construída no século IX, durante o califado de Córdova, num monte rodeado de planícies e pelo Douro. 

O cenário desta fortificação – que deveria suster os exércitos cristãos da Reconquista – condiz com a grandeza ascética que marca toda a província de Soria. "Soria pura, Soria fria", escreveu António Machado, noutro poema. Nascido andaluz, criado em Madrid, consta que não se deixou impressionar quando chegou à região onde viviam então 7000 pessoas. Basta olhar pela Porta Sul ou pela Porta Califal de Gormaz para perceber por que mudou de opinião. "Encontrei a pátria onde corre o Douro / Por entre falésias cinzentas / e fantasmas de velhos carvalhos / além em Castela, mística e guerreira / Castela a gentil, humilde e brava / Castela da arrogância e do poder". Ainda que o vento fustigue o rosto, nada importa quando as vistas pousam nos campos e no Douro de Gormaz. 

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Ermida de San Baudelio, em Berlanga DR
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Castelo de Berlanga DR

Seguindo para Oriente, chega-se a Berlanga, onde pontifica a ermida de San Baudelio, singularidade moçárabe, convento com uma coluna central em forma de palmeira e de cujas paredes desapareceram parte das pinturas pagãs que as decoravam. Hoje estão no Museu do Prado (Madrid) e no Metropolitan de Nova Iorque. Mesmo assim, merece bem a visita.

Há muito mais em Berlanga: se a caterdal gótica de Burgo de Osma (século XIII) impressiona pelo excelente estado de conservação, em Berlanga encontra-se rival à altura na Colegiada Santa Maria del Mercado. Construída a partir do século XVI, apresenta-se em estilo gótico-renascentista e guarda um elemento decorativo incomum em igrejas: um caimão dissecado, trazido por Frei Tomás de Berlanga, bispo de Panamá e descobridor (por acidente) das ilhas Galápagos.

Regressando a Soria (cidade), é tempo de "ir de tapas". Até porque "não ter vícios nada acrescenta à virtude", como dizia o poeta. Dos bares da Praça Ramón Benito Aceña, segue-se para a rua Aduana Vieja, onde se reecontram estrofes de Machado (sempre ele, sempre ele). 

A igreja de São João é um exemplar único de arquitectura, com arcos que evidenciam influência islâmica. E uma vez perto do rio, termina-se na ermida de San Satúrio, patrono da cidade. A entrada faz-se a partir de uma gruta. Ao lado corre o Douro. Ali se escutam, como escreveu Machado, "as folhas secas dos choupos a acompanhar o som da água, choupos cujos troncos têm gravadas iniciais de nomes de namorados e números que são datas". Ainda hoje é assim: muitos amores ficaram escritos em troncos que ladeiam o rio. Com nomes e datas.

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Arcos de São João, um exemplar único de arquitectura com arcos que evidenciam a inflência islâmica DR

Mas se há ano que Soria nunca esquecerá, esse é o de 133 antes de Cristo. Após 20 anos de assédio, Numância caiu nas mãos do invasor romano, que perdeu centúrias de militares em sucessivas batalhas – e até elefantes, que o senado mandara de África para a Hispânia. Embora em superioridade numérica, Roma nunca conseguiu bater os numantinos. Mas o destino destes ficaria escrito com a chegada de Cipião Emiliano, o militar que liderou a tomada de Cartago e depois a arrasou. Em vez de atacar os celtiberos arevacos de Numância, como tinham feito os antecessores, cercou a povoação com nove quilómetros de muro, isolando-a e cortando-lhe acesso a comida e água. Ao fim de 11 meses de cerco, os arevacos estavam derrotados pela inanição. A esmagadora maioria matou-se antes de os romanos entrarem por ali dentro: "Antes morto do que escravo de Roma."

O inimigo actual de Soria é bem diferente. Também isola, mas sem cercar. Chama-se esquecimento. Muitos sorianos preferiram mudar de ares, emigrar. No século XX fugiram da pasmaceira sem oportunidades e do franquismo. No século XXI recusam-se a regressar.

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Um dos "graffiti" espalhados pela Numanguerrix nas terras altas de Soria Numanguerrix

Outros, como Ruben García e Edu Torres, mais a Numanguerrix deles, deixaram-se ficar e lutam. Criaram um passaporte para desafiar turistas a visitarem os locais mais despovoados das Terras Altas – afinal, 91% de Soria é um deserto populacional. Das 183 localidades da província, 167 têm menos de dez habitantes. Em cada ponto deste circuito turístico, deixaram um mural, um graffiti. Quem regressar à loja da Numanguerrix com o passaporte preenchido – prova de que completou a volta – recebe uma caneca grátis. É a arte urbana a fazer das suas.

Em Almajano, pintaram-se girassóis – cultura importante da região. Em Bretún, o mural mostra um dinossauro – a cidade está cheia de pegadas e ali perto, em Fuentes de Magañan, ergue-se uma réplica de um apatosauro com uns homéricos 32 metros de comprimento e oito de altura. Tais atractivos não enchem Soria, mas a cidade conserva outros trunfos. Todos os anos, em Novembro, chegam a Soria reforços, por via da cultura. É o festival de curtas-metragens, certame internacional, que faz 20 anos em 2019. É curto para grandes mudanças, mas duradouro na resistência. 

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Réplica de um Apatosauro, com 32 metros de comprimento e oito de altura – a região está pejada de vestígios de dinossauros DR

Em Campos de Soria, Machado terminou assim: "Pessoas da planície numantina / que a Deus guardais como velhas cristãs / Que o sol de Espanha te encha / de alegria, de luz e de riqueza!" Espanha, por que esperas?

A Fugas viajou a convite da Fundación Siglo / Turismo de Castela e Leão

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