A mentira dando voltas ao mundo

O problema da atual transformação da esfera pública está precisamente em compartimentá-la e fragmentá-la, de forma a que cada um só vê o que quer e só acredita no que quer.

Há dois anos, mais ou menos por esta altura, eu estava nos EUA nas vésperas das eleições presidenciais entre Donald Trump e Hillary Clinton. Certa noite eu deveria comentar a partir de Nova Iorque a atualidade política para a RTP. Além de procurar um lugar na rua onde pudesse fazer o “direto”, havia um problema que me atormentava. O tema que mais impacto estava a ter nas redes e nas conversas naquele dia era uma história bizarra até ao extremo: a suposição de que Hillary Clinton e o seu diretor de campanha estariam supostamente envolvidos num ritual demoníaco com uma bruxa e sacrifícios com sangue. Como dizer a quem nos via em Portugal que uma história daquelas tinha importância política sem que julgassem que estávamos todos loucos?

Em geral, a atitude a tomar seria não falar sequer no tema. Demasiado absurdo para que alguém pudesse acreditar, demasiado irrelevante para merecer comentário, assunto arrumado, ponto final. O problema é que eu tinha visto a história assumir dimensões invulgares nas redes mais ou menos subterrâneas de apoio a Trump, que eu seguia, e ser disseminada em tom gozão nas conversas entre apoiantes de Clinton, que eu conhecia. E por absurda que ela fosse, a história tinha importância política e poderia ajudar a influenciar um resultado que seria disputado até ao limite, e que acabou por ser decidido por uma margem minúscula. Acabei por mencionar a história no meu comentário, alertando para a importância que aquele tipo de rumores poderia vir a ter. Mas ainda tenho pena de não ter chamado ainda mais a atenção para o que se estava a passar.

A história era, evidentemente, mentira. A ligação muito ténue que explicava o boato estava num dos emails pirateados ao diretor de campanha de Clinton, John Podesta. Nesse email, o irmão do diretor de campanha, que era colecionador de arte, tinha enviado um convite a John Podesta — mas não a Clinton — para um jantar lá em casa onde estaria presente uma artista célebre, Marina Abramovic, em cujas obras estão presentes interesses sobre rituais xamânicos antigos. De onde artista=bruxa, rituais=cerimónia demoníaca, etc e tal. Em três tempos estava inventada uma história completamente louca que, no entanto, dominou as conversas durante um dos últimos dias de campanha nas eleições mais decisivas da grande superpotência mundial. Se o jantar tivesse sido com Paula Rego não quero nem imaginar de que coisas acusariam Hillary Clinton, quer ela estivesse ou não presente. Ou melhor, não quero imaginar, mas sou forçado a lembrar-me que nas catacumbas do trumpismo houve também alguém que interpretou as referências a jantares de pizza na sede de campanha como sendo orgias pedófilas e esse facto acabou por levar um louco a invadir uma pizzaria em Washington disposto a provocar um massacre. Nenhuma destas histórias alterou individualmente o resultado, mas todos os dias havia uma nova e o conjunto acumulado ajudou a cristalizar um ódio a Hillary Clinton por onde Donald Trump passou como por entre os pingos da chuva.

Como todos sabemos hoje, no tempo que levei a escrever três coisas verdadeiras nos três parágrafos anteriores já devem ter aparecido dezenas de boatos novos sobre Fernando Haddad nas eleições brasileiras: que Haddad promove a pedofilia, que Haddad tem um Ferrari, que Haddad distribuiu um “kit gay” pelas escolas básicas brasileiras — tudo mentira, é claro, e não só mentira mas mentira absurda. Mas eficaz, tanto mais que estes boatos não precisam de vir sequer à tona de água para terem efeito.

Uns meses depois do referendo do "Brexit" o Facebook revelou alguns dos anúncios da famosa Cambridge Analytica, empresa que trabalhou (em alguns casos, com financiamento ilegal) com a campanha anti-UE. São anúncios que foram distribuídos diretamente pessoa-a-pessoa nas consultas diárias de cada um no Facebook. São bem realizados e bem escritos, sem o caráter lunático dos boatos brasileiros ou americanos. Mas o que os tornou eficazes foi que eles nunca estiveram na praça pública e, assim, nunca precisaram de ser confrontados com os argumentos opostos: a uma pessoa que gostava de baleias enviava-se um anúncio a dizer que a União Europeia ajudava a matar baleias (não é verdade, mas basta encontrar um qualquer acordo comercial com a Noruega ou o Japão, que matam), a quem era idoso enviava-se um vídeo (dos mais eficazes que vi) em que se dizia que o centro de saúde teria de atender os imigrantes romenos antes das velhinhas britânicas, etc.

Já o sabemos do passado: de cada vez que há uma transformação estrutural na esfera pública há consequências sobre a sociedade e a política que podem chegar a ser brutais. E o problema da atual transformação da esfera pública está precisamente em compartimentá-la e fragmentá-la, de forma a que cada um só vê o que quer e só acredita no que quer. Quem ache que tem resposta fácil para isto está provavelmente enganado. Exceto uma — mais educação e informação, que demora a resultar. De qualquer forma, os efeitos desta transformação vão estar connosco muito tempo. Alguém escreveu — diz-se que foi Mark Twain mas é mais possível que tenha sido Jonathan Swift — que “uma mentira dá a volta ao mundo enquanto a verdade ainda está a calçar os sapatos”. A política feita de mentira já ganhou no "Brexit", ganhou com Trump e está prestes a levar o Brasil. E nós ainda não começámos sequer a pensar que sapatos podemos calçar.

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