A versão sobre a morte de Khashoggi mudou e Trump acredita na "fábula"

Ao fim de duas semanas a garantir que o jornalista saiu do consulado em Istambul com vida, as autoridades sauditas admitiram este sábado que Jamal Khashoggi foi morto. Mas Riade garante que foi um erro e já deteve 18 suspeitos.

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A Casa Branca considera "credível" a nova versão saudita sobre a morte de Khashoggi LUSA/ALI HAIDER

As poucas dúvidas que existiam sobre a morte de Jamal Khashoggi foram desfeitas este fim-de-semana, depois de a Arábia Saudita ter confirmado que o jornalista dissidente foi morto no consulado do país em Istambul, na Turquia, no dia 2 de Outubro. Só que a nova versão pode ser insuficiente para aplacar a indignação internacional: segundo o Ministério Público do país, o jornalista foi morto por acidente, estrangulado, depois de uma luta corpo a corpo com 15 agentes que apenas tentavam convencê-lo a regressar à Arábia Saudita.

Até agora, a versão do reino apontava para um desfecho muito diferente: Khashoggi tinha entrado no consulado a 2 de Outubro e tinha saído sozinho, estando desaparecido.

Mas esta versão não batia certo com as informações dos serviços secretos turcos, que dizem desde o primeiro momento que Khashoggi foi morto por 15 agentes sauditas que chegaram a Istambul a 2 de Outubro e regressaram a casa no mesmo dia, depois de o terem interrogado, torturado e assassinado.

Segundo as informações dos serviços secretos turcos, o corpo de Jamal Khashoggi foi desmembrado por um especialista em autópsias do Ministério Interior saudita, escolhido para fazer parte do grupo com esse objectivo em mente.

O jornalista, de 60 anos, teve uma ligação forte ao reino durante grande parte da sua vida, mas passou a ser um dos maiores críticos do regime após a nomeação de Mohammad bin Salman como príncipe herdeiro, no Verão do ano passado.

Mohammad bin Salman, de 33 anos, foi recebido no Ocidente como uma lufada de ar fresco devido à sua promessa de promover reformas, mas tem-se destacado por perseguir, deter e silenciar quem é visto como uma ameaça à sua posição. Foi por causa dessas perseguições que Khashoggi decidiu mudar-se para os EUA, no ano passado, onde escrevia textos críticos do príncipe herdeiro no Washington Post.

O facto de a Turquia ter começado a divulgar informações sobre os pormenores da morte violenta de Khashoggi — contrariando a primeira versão saudita — deu origem a uma onda de pressão internacional sobre o reino, e em particular sobre o príncipe herdeiro. Os especialistas nas relações de poder na Arábia Saudita consideram difícil que uma operação desta envergadura possa ser executada sem o conhecimento dos mais altos responsáveis.

Na terça-feira, a CNN avançou que a Arábia Saudita preparava-se para admitir que o jornalista foi morto, mas que tudo tinha acontecido sem autorização dos responsáveis do reino, num caso cheio de erros e mal-entendidos — afinal, uma versão muito semelhante à que acabou por ser anunciada este fim-de-semana pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita numa série de tweets publicados este sábado.

"Os resultados preliminares da investigação indicam que Khashoggi morreu", disse o ministério, acrescentando que a morte "aconteceu durante uma luta no consulado".

Detenções e despedimentos

Segundo a nova versão saudita, o jornalista tinha mostrado abertura para regressar ao país, e foi por isso que os agentes foram enviados a Istambul — para tentar convencê-lo a dar esse passo. Mas a conversa terá corrido mal e Jamal Khashoggi envolveu-se numa luta com os agentes, acabando por ser morto por estrangulamento, no meio da confusão.

Desde que a Turquia começou a divulgar informações sobre o caso, foi possível estabelecer ligações entre vários dos 15 agentes sauditas e o príncipe herdeiro. Mas o comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros não faz qualquer referência a isso, apesar de dois dos seus conselheiros mais próximos terem sido despedidos após as investigações do Ministério Público.

Mais do que isso, o rei saudita encarregou o príncipe herdeiro de liderar uma reforma dos serviços secretos, para evitar que casos como este se repitam.

Outros três responsáveis foram despedidos e 18 pessoas foram detidas. Entre os detidos estão o major general Ahmad Assiri, director-adjunto dos serviços secretos, e Saud Qahtani, principal responsável pelo controlo dos media do país e conhecido em alguns círculos como o "Steve Bannon saudita".

Segundo o Ministério Público, Assiri e Qahtani foram os principais responsáveis pelo plano — o primeiro terá montado a operação, sem deixar claro que o objectivo era apenas conversar com Khashoggi, e o segundo "contribuiu para um ambiente de agressividade que levou ao agravamento da situação", diz o jornal New York Times.

A ideia de que tanto Assiri como Qahtani podiam envolver-se num plano deste tipo sem que os seus superiores soubessem dos pormenores é contrariada por um tweet escrito por Qahtani no ano passado: "Acham que posso agir sozinho sem receber ordens/orientações? Sou um funcionário e um executivo digno de confiança às ordens do rei e do príncipe herdeiro."

A nova versão foi recebida de formas diferentes no Congresso norte-americano e na Casa Branca.

Para o senador Lindsey Graham, do Partido Republicano, é difícil acreditar na nova "explicação". "Dizer que estou céptico em relação à nova narrativa saudita é um eufemismo. Primeiro, disseram-nos que Khashoggi teria saído do consulado e negaram de forma clara que estavam envolvidos. Agora, houve uma luta e foi morto no consulado, sem o conhecimento do príncipe herdeiro. É difícil considerar esta 'explicação' credível", disse Graham.

Também o congressista Adam Schiff, do Partido Democrata, criticou a nova versão. "O reino e todos os envolvidos neste assassínio brutal têm de ser responsabilizados, e se a Administração Trump não liderar este processo, será o Congresso a fazê-lo", disse o membro da Câmara dos Representantes — que deverá voltar a ter uma maioria do Partido Democrata após as eleições do próximo dia 6 de Novembro.

Mas o ataque mais duro foi lançado pela direcção editorial do Washington Post, o jornal onde Khashoggi escrevia os seus textos críticos do príncipe herdeiro: "Que o Presidente Trump diga que esta fábula é credível apenas sublinha a sua vergonhosa intenção de contribuir para a tentativa do regime — e, em particular, do príncipe herdeiro —, de escapar a uma responsabilização com algum significado."

"Bom primeiro passo"

Mas na Casa Branca não parece haver uma grande vontade de contrariar a nova versão da Arábia Saudita — no início da semana, o Presidente Donald Trump já tinha sugerido que Khashoggi pode ter sido morto por "assassinos sem autorização", sendo acusado pelo Partido Democrata de ser um "responsável de relações públicas" do rei e do príncipe herdeiro sauditas.

Parte das preocupações da Casa Branca estão relacionadas com a estratégia para isolar o Irão, que passa pela reintrodução das sanções à compra de petróleo a partir de Novembro — para além da relação de forças entre os dois grandes rivais na região, os EUA precisam que a Arábia Saudita aumente a produção, para amortecer o impacto das sanções ao petróleo iraniano.

Questionado sobre se a nova versão é credível, Trump disse que "sim" e descreveu as detenções como "um bom primeiro passo".

Apesar disso, mostrou-se disponível para avaliar com o Congresso a possibilidade da imposição de sanções à Arábia Saudita, com uma ressalva: "O Congresso está muito interessado neste caso, mas se acabarmos por aprovar a imposição de sanções, eu preferia que não usássemos como castigo o cancelamento de um trabalho no valor de 110 mil milhões de dólares [95 mil milhões de euros], o que significa 600 mil postos de trabalho", disse Trump, referindo-se a um gigantesco negócio de venda de armamento ao reino.

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