Fake news: no Brasil, “as pessoas não querem mais saber dos factos, só das convicções”

Milhões de brasileiros vão votar no próximo domingo, depois de passarem meses a receber notícias falsas através do WhatsApp. O PÚBLICO falou com jovens que estudam jornalismo numa época em que os factos se tornaram numa questão de opinião.

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Bolsonaro foi o herdeiro das redes criadas no WhatsApp para a destituição de Dilma e a greve dos camionistas Diego Vara/Reuters

Há uns dias, o pai de Amanda, uma universitária de São Paulo, veio ter com ela assustado com uma fotografia que tinha recebido através do WhatsApp. Nela estava reproduzido aquilo que se dizia ser uma página de um livro escrito por Fernando Haddad, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) às eleições presidenciais. “Eram instruções que tinham sido escritas pelo Lenine sobre como tomar o poder para criar uma ditadura socialista, a primeira era ‘corrompa a juventude através da libertação sexual’”, recorda Amanda. A estudante de Jornalismo de 20 anos na Universidade de São Paulo (USP) teve dificuldade em acreditar. Em cinco minutos percebeu que “era tudo falso”. “Não era verdade que isso estava escrito no livro do Haddad, nem que o Lenine tinha escrito essas instruções”, concluiu.

Amanda e o pai depararam-se com uma das milhares de notícias falsas que têm circulado entre os eleitores brasileiros e que se tornaram numa marca da profunda polarização e agressividade que marcam a política nacional. A “notícia” em questão nem sequer é uma invenção recente. Desde a Guerra Fria que são difundidos prospectos com o título “As regras comunistas para a revolução”, um documento apócrifo que remonta à I Guerra Mundial. Mas os cinco minutos dispensados por Amanda ao texto parecem ser um fosso para os milhões de brasileiros que resumem a sua informação aos conteúdos partilhados em grupos de WhatsApp.

É difícil dizer com certeza científica até que ponto é que as informações partilhadas no WhatsApp (uma aplicação de mensagens instantâneas detida pelo Facebook) têm um efeito no comportamento eleitoral. Mas há dados que sugerem que essa influência é assinalável. Há mais de 120 milhões de utilizadores do WhatsApp no Brasil, tornando o mercado brasileiro num dos principais a nível mundial. Uma sondagem do instituto Datafolha do início de Outubro mostrava que 44% do eleitorado dizia ler notícias através desta rede e quase um quarto afirmava partilhar nela conteúdos políticos.

“O WhatsApp ganhou muita confiança dos brasileiros por ser encriptado, por ser gratuito e por dar uma garantia de que apenas as pessoas que pertencem ao grupo vêem as mensagens”, diz ao PÚBLICO a ex-jornalista e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Marília Martins. Nos últimos anos, a justiça eleitoral tem travado uma luta afincada para desactivar contas de utilizadores de Facebook que espalhem desinformação, mas no WhatsApp, onde os grupos são fechados, a tarefa é mais difícil.

Na quinta-feira, o jornal Folha de São Paulo revelou que empresários apoiantes do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro tinham financiado pacotes de disseminação de mensagens por grupos de WhatsApp contra o seu adversário. Os contratos feitos com empresas especializadas na difusão em massa de conteúdos nas redes sociais foram avaliados em 12 milhões de reais (três milhões de euros). O PT apresentou uma queixa junto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) alegando que a campanha de Bolsonaro não só contribuiu activamente para a manipulação do espaço público, mas que também é acusada de financiamento ilegal – desde 2015 que são proibidas doações de empresas a campanhas eleitorais, a chamada “caixa dois”.

Bolsonaro diz não ter responsabilidade pelas acções dos seus apoiantes. “Não tenho controle se tem empresário simpático a mim fazendo isso”, afirmou na sexta-feira. O TSE adiou para este domingo uma conferência de imprensa sobre o assunto, mas a imprensa brasileira considera muito improvável que haja uma decisão final da justiça eleitoral em breve.

A WhatsApp anunciou que baniu cem mil números no país e a Polícia Federal instaurou ontem um inquérito para apurar a disseminação, por empresas, de mensagens em massa relativas à disputa presidencial.

É inegável que é Bolsonaro quem mais tem beneficiado com este domínio do WhatsApp sobre o espaço de discussão pública no Brasil. Sem praticamente qualquer tempo de antena na rádio e na televisão – outrora um factor determinante para o sucesso de qualquer candidatura – e sem uma máquina partidária bem instalada o capitão reformado contou como poucos com a militância nas redes sociais.

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44% dos eleitores brasileiros disseram numa sondagem ver as notícias no WhatsApp Reuters

Este processo não começou agora e nem sequer com Bolsonaro. As redes de grupos no WhatsApp que hoje o apoiam “foram construídas ao longo de duas campanhas que foram muito populares: a campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff [ex-Presidente, do PT] e as redes de mobilização e apoio à greve dos camionistas”, explica o professor de Políticas Públicas da USP, Pablo Ortellado. Estes grupos são “muito heterógeneos”, diz o especialista, juntando eleitores de perfis muito diferentes, ao contrário dos grupos de apoio ao PT que “só têm eleitores convertidos e militantes políticos”. “Quem comandava essas redes passou a apoiar o Bolsonaro e ele herdou essa infraestrutura”, afirma.

A estas redes pré-existentes, a campanha de Bolsonaro juntou grupos mais militantes, criados de propósito para as eleições presidenciais. “A fusão dessas redes gerou essa máquina de propaganda muito eficiente, que conseguiu derrotar campanhas muito mais ricas”, conclui Ortellado.

Laços de família cortados

Foi com este pano de fundo que o PÚBLICO conversou com estudantes de jornalismo da universidade mais prestigiada do Brasil. Encontramos Amanda sentada ao computador numa das salas do departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes da USP. Veste uma T-shirt dos Sonic Youth e em cima da mesa tem um livro da bielorrussa Svetlana Alexievich, escritora que recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 2015 pela sua obra em que cruza a ficção e o jornalismo. Amanda decidiu ser jornalista aos 15 anos e não se sente desanimada pelo actual clima de desinformação no Brasil.

“Dá vontade de oferecer informação de qualidade”, diz Amanda, embora admita que nota uma “desvalorização do trabalho do jornalista”. Ninguém parece querer abandonar a carreira, apesar das dificuldades. “Acho que a única forma de vencer isto é com jornalismo”, diz Bruno, um estudante de 21 anos, que está no segundo ano do curso.

Não há brasileiro que por estes dias não tenha o bolso carregado de notícias falsas e estes estudantes sentem um certo dever em tentar alertar para isso. Bruno diz que depende do grau de proximidade com a pessoa em questão. A primeira coisa que faz quando alguém partilha uma notícia falsa num grupo onde está é procurar saber se a informação já foi verificada por um dos muitos sites especializados, como a Agência Lupa do grupo da Folha, ou o Projecto Comprova. Porém, Bruno não se lembra de alguém ter reconhecido estar errado. “Geralmente, quem mandou a notícia ou não diz nada, ou manda outras imagens que não têm nada a ver, acusam o Lula, por exemplo. Desviam o assunto.” O estudante deixa uma conclusão pouco animadora para um futuro jornalista: “As pessoas não querem mais saber dos factos, só das suas convicções.”

Ana Carolina e a irmã têm em curso uma campanha junto da família para que não votem em Bolsonaro. Procuram links para desmontar as notícias falsas propagadas pelos seus apoiantes, mas não estendem a campanha a toda a família. “Temos um pouco de medo porque a família não é muito unida e receamos provocar atrito”, explica a estudante de 20 anos. A grande vitória foi ter convencido o próprio pai, que na primeira volta tinha votado em Ciro Gomes, candidato do centro-esquerda, mas que se preparava para votar em Bolsonaro daqui a uma semana.

“Resolvemos dizer ‘pai, senta com a gente, vamos conversar’. Ele tem duas filhas mulheres, além da minha mãe. Eu disse que achava que se o Bolsonaro ganhasse no segundo turno [dia 28 de Outubro], eu ia ter medo de sair de casa no dia seguinte”, explica Ana, referindo-se à onda de violência levada a cabo por apoiantes do ex-capitão do Exército logo após a primeira volta. Ana Carolina diz que ela e a irmã ficaram felizes com o desfecho: “Ele disse que vai anular o voto. Menos mal.”

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