Mapear o Alojamento Turístico: bastam alguns “cliques” e contas

Que proporção entre o alojamento turístico e a habitação permite o direito de todos a viver, usufruir da cidade e partilhá-la com os visitantes?

Sou moradora na zona histórica do Porto e gosto de aqui viver. Nos últimos quatro anos, esta zona viveu grandes transformações e viu crescer exponencialmente o turismo. Os visitantes foram enchendo as ruas. As placas com a sigla AL (Alojamento Local) surgiram em edifícios recentemente intervencionados, inauguraram-se hotéis, multiplicaram-se os produtos de consumo para turistas. Por aqui, parece que está quase sempre toda a gente em férias. A menos que se atente na azáfama de quem trabalha em construção, restauração, limpeza, vendas, transportes, entregas, recepção, entretenimento... Azáfama discreta, excepto quando os serviços prestados implicam fazer muito barulho ou bloquear a passagem nas ruas.      

O primeiro despejo de que ouvi falar foi o da avó de uma amiga, ao lado da Rua das Flores. O edifício onde ela morava já tem parecer positivo do Turismo de Portugal para ser um hotel. Nas ruas, mercearias e cafés (os que ainda restam a preços comportáveis para a população) fui também ouvindo falar de despejos, de contratos não renovados e da carestia da habitação no Porto. Um dos vizinhos, reformado por invalidez, foi viver para uma pensão. O seu minúsculo apartamento de condições precárias transformou-se num AL pintado de branco e decorado com simplicidade. Muda de inquilinos todos os dois ou três dias. Sem respostas estatais, as pessoas estão a mobilizar-se. Tenho participado em diversos colectivos, focalizados na solidariedade e no direito de todos à habitação. Foi assim que me interessei pela relação entre o crescimento do turismo e a habitação.  

Durante o Verão, fiz algumas contas ao Alojamento Local (AL) no Porto, a partir da base de dados do Registo Nacional do Alojamento Local (nas modalidades de apartamentos, moradias, estabelecimentos de hospedagem e hostels). Considerei excelente a disponibilização de dados em bruto aos cidadãos: numa democracia quer-se transparência e acesso à informação. Admirei-me que, sendo assim, houvesse escassez de análises actualizadas sobre o desenvolvimento do AL no país. De seguida, analisei a base de dados do Registo Nacional de Empreendimentos Turísticos (ET — hotéis, apartamentos turísticos e hotéis-apartamento) e continuei a explorar o website do Turismo de Portugal. Cliquei numa ligação que não costuma despertar-me curiosidade: “business”.

A partir deste portal, encontrei o SIGTUR. Que maravilha! Afinal, a maioria das análises que tinha andado a fazer já estavam integradas online, com sistema de georeferenciação e indicadores calculados na hora. O utilizador pode construir mapas e há balõezinhos a indicar o local dos registos, como no Airbnb. Também é possível importar bases de dados. O melhor: uma funcionalidade que permite aceder ao Alojamento em Empreendimentos Turísticos Perspectivado (ET em fase de loteamento, projecto ou construção, com parecer positivo do Turismo de Portugal).

Mapear o presente e o futuro do Alojamento Turístico

A maior parte dos valores que aqui apresento foram calculados pelo SIGTUR. Com todos estes recursos não é muito difícil mapear o Alojamento Turístico no Porto ou em qualquer localidade Portuguesa. Os meus cálculos ainda foram úteis para a caracterização das antigas freguesias do centro histórico e do Futuro do Alojamento Turístico no Porto.

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O mapa 1 apresenta as unidades de AL e de ET, no concelho do Porto, por freguesia. Quando a aplicação foi consultada, o Porto tinha 6751 registos de Alojamento Local, 4855 (71.9%) dos quais na União de Freguesias Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, São Nicolau e Vitória (que passo a designar como União de Cedofeita) e 863 (12.8%) na freguesia de Bonfim. Relativamente aos Empreendimentos Turísticos, havia 98 unidades registadas: 62 na União de Cedofeita, 10 em Bonfim e 12 na União de Lordelo.

Num dia de lotação total em AL e ET, a capacidade de Alojamento Turístico no concelho do Porto é de 45099 utentes. Destes, a União de Cedofeita é a que possui a maior capacidade: 28451. Seguem-se Bonfim, com capacidade para 5718 utentes, e  União de Lordelo, com 5374.

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O mapa 2 mostra a capacidade máxima de Alojamento Turístico para cada mil habitantes (dados populacionais do Censos 2011). Também quanto a este indicador, a União de Cedofeita é a que apresenta maior densidade: 704 utentes para cada mil habitantes. Bonfim e União de Lordelo têm os rácios imediatamente inferiores (respectivamente, 236 e 135). Para as restantes freguesias, os rácios são marcadamente mais baixos, entre 34 e 49 utentes para cada mil habitantes.

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O mapa 3 apresenta a capacidade máxima de utentes para cada 1000 habitantes, nas antigas freguesias da União de Cedofeita. Em quatro, a capacidade de Alojamento Turístico ultrapassa o número de habitantes: Vitória (com 1602 utentes para cada mil habitantes), São Nicolau (1376) Santo Ildefonso (1236), e Sé (1069). Tendo em conta que os rácios são calculados com base no Censos 2011 e que, desde então, a população do Porto decresceu (particularmente nas zonas históricas), os rácios reais serão, certamente, mais elevados.

Finalmente, o SIGTUR permite conhecer o ET Perspectivado (ET a abrir futuramente). É possível desenhar um cenário do futuro do Alojamento Turístico no Porto se, ao ET Perspectivado, forem adicionados os dados do Alojamento Turístico existente (AL+ET). Nesta antevisão, não é possível incluir o AL previsto, pois não há informações para antecipar o seu registo. O mapa 4 mostra esse “Futuro do Alojamento Turístico no Porto”.

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Para o concelho do Porto estão previstos 89 novos Empreendimentos Turísticos, com capacidade total de 10418 utentes. É na já sobrecarregada União de Cedofeita que se localizará a maior parte: mais 63 unidades, para 6376 utentes. Perspectiva-se, nesta freguesia, uma capacidade futura em Alojamento Turístico de 861 utentes para cada mil habitantes; para Bonfim o rácio será de 263; na União de Lordelo, de 221.

A compilação destes dados, disponíveis ao público, faz sobressair a desproporção da distribuição do Alojamento Turístico no concelho do Porto, com uma grande incidência na União de Cedofeita. Os mapas apresentados deixam adivinhar o que aqui se vive. É um território a sofrer uma repentina transformação. O stress populacional tem todas as condições para se fazer sentir, mesmo que o turismo traga também benefícios. As relações de vizinhança vão-se dissipando. A Baixa do Porto é cada vez mais frequentada e menos habitada. Prédios de fachada limpa, branquinhos por dentro, exibem coloridas flores de plástico nas varandas. Não há tempo para ver crescer as plantas: quem lá mora, fica poucos dias. Futuramente, podem desaparecer os habitantes que constituem o tecido social, aquelas e aqueles que saúdam vizinhos, se preocupam com o endireitar da pedra da calçada e sabem organizar festas populares.

Habitantes tradicionais ou habitantes provisórios?

É neste sentido que a gentrificação turística se torna diferente dos processos de gentrificação que conhecemos no passado. Não se trata apenas de um conjunto de factores sócio-económicos que, pela valorização do imobiliário, determinam a substituição, numa dada zona da cidade, de populações desfavorecidas por outras com mais recursos. Também o sendo, a gentrificação turística acrescenta-lhe a segmentação do espaço urbano e a especialização de algumas zonas num mercado uniforme: o do turismo. Os habitantes tradicionais são substituídos por habitantes provisórios, que vão sucessivamente ocupando e fruindo a cidade sem realmente a habitar. Ao mesmo tempo, rareando moradoras e moradores, desaparecem estruturas e serviços a eles destinados e multiplicam-se os de uso turístico.

Perante este quadro, fica-me a pergunta: que proporção entre o alojamento turístico e a habitação permite o direito de todos a viver, usufruir da cidade e partilhá-la com os visitantes? Vistos os mapas, afigura-se que na União de Cedofeita já se ultrapassaram as razoáveis proporções (tal como em algumas zonas de Lisboa e de outras cidades do planeta). Há que decidir e tomar medidas. Está ao alcance imediato dos decisores locais a contenção do AL na União de Cedofeita e noutras áreas em crescimento turístico acelerado. A legislação permite-o a partir de 22 de Outubro. Os licenciamentos de ET também devem ser repensados. Há diferentes modelos de regulação do Alojamento Turístico a ser implementados em várias cidades, internacionalmente. O Porto merece e precisa de um modelo que, articulando medidas estruturais, imediatas e a longo prazo, garantam a cidade aos seus habitantes.

Ana Barbeiro é investigadora e activista nas áreas da discriminação e dos direitos humanos

  • No domingo, o Destaque do PÚBLICO é dedicado ao tema Alojamento Local em Portugal
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